A introdução de Bodies of Memory começa explicando porque a capa é uma pintura de Ôgai Yataro, que representa um jovem piloto japonês em 1944, morto dois anos depois de turbeculose. A pintura de Ôgai, assim como aconteceu com outros pintores, era uma peça bastante deteriorada, uma vez que havia ficado deteriorada pelo fato de ter sido estocada durante meio século, sem qualquer cuidado. Apenas em 1997 ela foi restaurada para fazer parte do acervo do Museu Mugonkan. Igarashi escolhe esta imagem porque ela representa, a seu ver, o que aconteceu com o corpo japonês neste período do pós-guerra. Uma imagem que está desaparecendo mas insiste em se manter presente, este seria o seu apelo.
O projeto do livro é examinar as condições materiais e discursivas do Japão do pós-guerra para produção histórica e da memória. O Museu Mugonkan que seria uma espécie de Museu Emudecido, foi criado por Kuboshima Sei’ ichirô e lá estão os trabalhos de jovens artistas que morreram depois da guerra. São materiais que nunca foram mostrados ao público até então, como cartas, diários, e outros objetos guardados pelas famílias, Kuboshima chegou a escrever um livro que conta a história do museu (Mugokan e no tabi). Igarashi considera este exemplo importante para discutir a natureza contraditória do passado em uma presença que é presença, mas ao mesmo tempo ausência.
Kuboshima admite que para montar este museu foi fundamental o encontro com Nomiyama, um artistas que foi recrutado durante a guerra mas acabou adoecendo e voltou. Muitos de seus colegas morreram e ele decidiu visitar as famílias destes amigos. Foi aí que surgiu um livro Inori no gashû e a idéia de criar o museu. No entanto, deprimido com tudo que havia visto, Nomiyama acabou abandonando o projeto.
Kuboshima, por sua vez, também tinha uma vida complexa. Por conta da guerra seus pais adotivos perderam a sapataria que tinham em Tóquio. A crise financeira o fez buscar os pais biológicos com a esperança de que esses estivessem em melhores condições de ajuda-lo. Por fim, descobriu o pai, Minakami Tsutomu que era um escritor importante.
Igarashi reconhece nesta história outra característica importante do pós-guerra. A preferência por esquecer o passado e substituí-lo por um material mais saudável, tanto no que se refere ao sucesso econômico, quanto a lembranças menos doloridas.
A despeito de todas essas questões que envolviam os problemas existenciais de Kuboshima, o seu museu ajudou a dar um sentido ao presente penoso do pós-guerra. Marcando o processo de esquecimento, a coleção de arte do Mugonkan estimulou a todos os seus visitantes a um processo de lembrança, dando sentido ao que parecia necessário à sociedade japonesa do pós-guerra. Aos poucos, ele decidiu ampliar ainda mais as obras do museu, não mais restringindo aos ex-formados do Tokyo College of Arts cujas famílias disponibilizaram os materiais, mas buscou também estabelecer contato com familiares de outros artistas de fora do Japão que morreram em guerras com colônias japonesas.
O livro de Igarashi segue esta trilha do museu mas vai muito alem, prestando atenção nas estratégias narrativas que promoveram uma descontinuidade e ao explicar a perda, expressaram e reprimiriam simultaneamente esta perda. Tratava-se de algo familiar para todos que viveram os 25 anos seguintes à guerra no Japão.
Igarashi se interessa também pelos modos como a realidade do dia a dia reconstitui uma identidade nova e não apenas o discurso político já desgastado. Por isso opta por fazer leituras de experiências diversas como a literatura, o rádio, filmes, eventos esportivos, TV e textos de autores consagrados como Ôe Kenzaburo e Maruyama Masao, uma vez que estes discutiram discursos de hibridação no Japão.
Há muitas questões políticas envolvidas. O reconhecimento da perda da guerra para os japoneses era uma contrapartida para garantir a paz e, evidentemente, a hegemonia estadunidense.
O primeiro capítulo discute as mudanças radicais de entendimento do corpo no Japão que deixava de ser um modelo estável como o do kokutai (corpo nacional) e inefável (corpo do imperador). O segundo, foca nos sentidos corporais após o colapso do regime da guerra, discutindo a situação ambígua de liberação de certos paradigmas da cultura japonesa e, ao mesmo tempo, a nova posição de submissão ao regime regulatório estadunidense. Neste momento, Igarashi aprofunda algumas leituras de Maruyama Masao e apresenta a chamada literatura da carne de Tamura Taijirô. O terceiro capítulo mostra como o Japão sempre teve uma identidade híbrida, questionando o mito da singularidade japonesa (Japanese Uniqueness) que havia se tornado objeto de uma espécie de apologia durante muitas décadas. Discute-se a obra dos escritores Kojima Nobuo e Ôe Kenzaburo.
O quarto capítulo fala dos corpos monstruosos na cultura de massa japonesa como metáfora do pós-guerra, exemplificando através de Godzilla. O quinto capítulo relata o fenômeno da Olimpíada de Tóquio, os grandes investimentos que giraram em torno deste evento tendo como finalidade mudar a imagem do corpo, mais uma vez, apostando no corpo saudável. O quinto capítulo salienta os modos como as imagens corporais aparecem nas obras de Nosaka Akiyuki e Mishima. A metáfora do desmembramento parece recorrente.
Em todo livro não se trata, portanto, de restaurar experiências originais da guerra, mas de propor leituras daquilo que ficou faltando, através da análise das várias camadas de narrativas de significação do período pós-guerra.
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