Muito antes de palavras como "multiculturalismo" e "cozinha fusion" entrarem para o léxico moderno, Aida de Jesus e seus antepassados já misturavam comida, língua e DNA de diversos cantos do globo.
Essa chef de 95 anos, cujos ancestrais provinham de Goa, Malaca e outros antigos postos avançados do império português, cresceu celebrando o Natal e o Ano-novo chinês em ceias à base de linguiça portuguesa, "bok choy" [acelga chinesa] e galinha cafreal, um prato com pedigree africano. Ela falava português na escola, cantonês na rua e um animado crioulo com "as meninas".
"Nós, macaenses, estamos sempre misturando", disse, em inglês, a Senhora de Jesus, como prefere ser chamada, sentada no salão do restaurante que sua família comanda há décadas em Macau. "Somos muito adaptáveis."
Mas, hoje em dia, os macaenses -como são chamados os habitantes mestiços desta ex-colônia portuguesa na China- veem sua rica tradição cultural ameaçada.
Sempre menos numerosos que os migrantes chineses e comerciantes portugueses que lotavam este ponto densamente povoado do delta do rio das Pérolas, os macaenses que permaneceram após Pequim recuperar o território, em 1999, estão em franca minoria -menos de 10 mil numa população de quase 500 mil habitantes, 95% dos quais chineses.
"Há, provavelmente, mais macaenses vivendo na Califórnia e no Canadá do que em Macau", disse o advogado Miguel de Senna Fernandes. "Agora que somos parte da China, estamos enfrentando uma força muito absorvente, dominadora." Não que Fernandes esteja desistindo. Além de organizar eventos sociais na sua Associação dos Macaenses, ele também se tornou o Dom Quixote do patuá, listado pela Unesco como uma língua ameaçada.
Ele ajudou a publicar um dicionário de expressões patuás e há 18 anos encena anualmente uma peça que retoma a "doci papiaçam" -doce conversa- derivada do português arcaico, do malaio e do cingalês, com pitadas de inglês, holandês, japonês e, mais recentemente, uma grande contribuição do cantonês.
Esse é um dos últimos remanescentes dos idiomas crioulos que floresceram na constelação de portos que constituam as possessões asiáticas e africanas de Portugal.
O linguista Alan Baxter, da Universidade de Macau, especialista em crioulos derivados do português, disse que as origens do patuá macaísta remontam ao século 16, quando comerciantes portugueses e seus agregados faziam negócios com africanos, indianos e malaios e, então, seguiam para outras colônias do império.
No começo, essa língua atendeu bem aos macaenses mestiços, servindo de ponte entre os governantes portugueses de Macau e seus habitantes predominantemente chineses. Mais recentemente, depois de começarem a enviar seus filhos a escolas portuguesas, os macaenses se tornaram indispensáveis como gestores e burocratas.
O mesmo sincretismo se dá no cotidiano dos macaenses, muitos dos quais são católicos devotos, mas dão aos seus filhos envelopinhos vermelhos de dinheiro no Ano Novo Lunar.
Nos anos imediatamente anteriores à transferência para a China, milhares de macaenses partiram, e muitos deles se radicaram em Portugal. Mas, na última década, Pequim manteve sua promessa de dar a Macau 50 anos de relativa autonomia, então a emigração parou, e alguns voltaram.
Um atrativo irresistível tem sido o crescimento econômico que chegou a 20% no ano passado, motivado pelo jogo e pela construção.
Filomeno Jorge está determinado a manter viva pelo menos uma faceta da identidade macaense. Toda quarta-feira, ele junta os sete membros da sua banda, a Tuna Macaense, para desfiar um repertório que inclui fados portugueses, baladas cantonesas e pop filipino.
Jorge, 54, está cada vez mais preocupado em encontrar novos talentos para o grupo. "Todos nós na banda já passamos dos 50. Depois que morrermos, nossa música vai morrer, e eu não posso deixar isso acontecer."
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