segunda-feira, 7 de março de 2011

O bairro arborizado ao pé da colina se chama Bukchon, um distrito do centro de Seul que constitui a última coleção remanescente das casas com pátio tradicionais da cidade.
Apesar de toda sua tranquilidade aparente e arquitetura silenciosamente elegante, Bukchon também é um lugar de raiva e desconfiança. Os preservacionistas, veja só, estão esganando uns aos outros.
“Eles querem matar meu marido e nos tirar daqui”, disse uma moradora, Jade Kilburn, empresária coreana que, junto com seu marido inglês, David, já comprou briga com os vizinhos, a polícia, os tribunais e uma série de tecnocratas da cidade na tentativa de evitar que as casas tradicionais de Bukchon sejam reformadas ou demolidas completamente.
Uma das rivais de Kilburn é Kim Hong-nam, uma historiadora da arte formada em Yale e ex-diretora do Museu Nacional Popular e do Museu Nacional da Coreia. Ela mora na vizinhança e acha a senhora Kilburn “rígida demais”.
“Ele só reclama”, diz Kim, tomando café e fumando um cigarro em sua casa ensolarada numa tarde recente. “As pessoas daqui não gostam dele.”
Kim e os Kilburns vivem – orgulhosamente – nas chamadas hanok, as tradicionais casas térreas coreanas com telhas de barro.
As hanok de Seul sofreram muito durante a ocupação japonesa de 1910 a 1945, quando as casas com pátios foram divididas e reformadas para se tornarem habitações menores; durante a Guerra da Coreia de 1950 a 1953, quando muitas foram destruídas; e durante a expansão da construção civil que começou em Seul nos anos 70. Embora elas não sejam exatamente antigas, as hanok de Bukchon dos anos 20 e 30 são o que existe de arquitetura residencial histórica aqui.
Não faz muito tempo, Bukchon tinha 2.500 hanok. Agora elas quase não chegam a 800, e apenas uma rua do bairro inteiro continua intocada. Os preservacionistas acreditam que as hanok originais estão em perigo como as baleias ou os pandas. Bukchon, para eles, é a última floresta tropical numa cidade cheia de motosserras.
Kilburn, que tem um jeito gentil e polido, diz que estava fotografando a demolição de uma hanok em 2006 quando foi golpeado no peito pelo arquiteto que supervisionava o projeto. Ele caiu na rua, abriu a cabeça e passou um mês no hospital. No fim, ele próprio foi condenado por atacar o arquiteto.
As brigas entre vizinhos costumam ser banais, quer aconteçam em Seul, Paris ou Nova York. Mas a inimizade em Bukchon diz respeito a questões mais amplas, como por exemplo se os coreanos são tão aficionados pelo novo que ignoram ou menosprezam sua própria tradição arquitetônica. Um paralelo, talvez, seja Beijing, que destruiu totalmente suas próprias casas com pátio tradicionais.
“As pessoas aqui destruiriam voluntariamente essas casas para construir prédios cada vez mais altos, para aumentar a área construída e ganhar mais com os aluguéis”, diz Doo Jin Hwang, um arquiteto notório de Seul que restaurou algumas hanok, escreveu um livro sobre elas e desenvolveu um aplicativo para iPhone sobre as casas de Bukchon.

Uma obsessão nacional pela modernidade e uma mania de construir prédios cada vez mais elaborados levaram à destruição de milhares de hanok. Seul vem se empenhando firmemente em destruir o velho e criar o novo.
“Podemos perder nossa história”, diz ele.
Até o prefeito de Seul, Oh Se-hoon, sabe das hostilidades na minúscula vizinhança de Bukchon.
Numa entrevista, Oh considerou “muito exagerada” a visão dos Kilburn de que uma conspiração formada por funcionários municipais, construtores e um círculo influente de mulheres ricas (incluindo Kim) fez com que muitas casas antigas fossem compradas através de intimidação e fraude há cerca de dez anos.
Na visão dos Kilburn, essa campanha transformou Bukchon – que antes era uma área residencial de cortesãs e frequentadores da corte de dois palácios adjacentes da dinastia Chosun do século 15 – num enclave de casas de veraneio para os ricos, ao estilo dos vilarejos falsos de Potemkin. Casas em terrenos de 85 metros quadrados podem custar US$ 2 milhões (R$ 3,39 milhões) ou mais.
Kim restaurou metade de sua hanok da maneira tradicional coreana, usando materiais feitos à mão e carpinteiros experientes no velho estilo. A outra metade é mais europeia do que asiática. A pequena cozinha é elegante e impecável. Uma poltrona de papelão de Frank Gehry é a peça de destaque na sala de estar. A casa poderia estar em Milão ou Nova York.
“Tenho um amor e um respeito imenso pelas coisas coreanas, mas também sou uma pessoa contemporânea”, diz Kim, que diz ter lutado com o conselho de arquitetura de Bukchon por mais de um ano para conseguir aprovar o projeto de sua reforma.
“Não vou ser uma monja ou uma mulher Chosun do século 18. Essa casa é a soma da minha vida, do meu gosto e senso estético. É possível manter um equilíbrio entre o tradicional e o moderno.”
A parte “moderna” é que parece irritar Kilburn. Reformar o interior de uma hanok, acrescentar um porão ou um segundo andar são o tipo de insulto arquitetônico que ele abomina, e teme que a pureza das hanok esteja se desvanecendo.
“Em toda parte você pode ver que são permitidas exceções, uma por vez”, diz ele. “É a morte por meio de milhares de cortes.”
Ele mal pode olhar para as hanok que se transformaram em cafeterias, pizzarias e lojas luxuosas de joias e arte popular. Ele aponta com desdém para uma nova garagem com portas de madeira entalhadas que tentam imitar as características do estilo hanok. Ele reclama que garagem foi construída para guardar o Lamborghini de um vizinho.
“Só queremos manter a herança arquitetônica de Bukchon”, diz Kilburn, jornalista que relata os seus esforços de preservação em seu site, kahoidong.com. “A multa por demolir uma hanok é de apenas US$ 300 (R$ 508). Então as pessoas simplesmente pagam. É uma tragédia.”
Mas o arquiteto Hwang diz que quando alguma coisa tradicional não faz mais sentido prático – como o isolamento feito de argila e terra, por exemplo – ele está disposto a atualizá-la com um material mais moderno, como o material de isolamento Tyvek.
“Cedo ou tarde vou ofender alguém da comunidade arquitetônica daqui”, diz ele. “Mas você não pode preservar tudo em todos os níveis. Esse tipo de simbolismo não funciona mais para nós aqui na Coreia.”
A prefeitura da cidade começou a reajustar as leis de preservação em Bukchon há cerca de 35 anos, determinando inicialmente que não poderiam ser feitas melhorias em nenhuma hanok dali. Os telhados ficaram sem reparos, casas de concreto foram construídas nos jardins dos pátios e os sistemas de aquecimento alimentados por tijolos de carvão foram vencidos pelos notórios invernos de Seul. Como resultado, o bairro de Bukchon ficou abandonado.
O protecionismo exagerado da prefeitura acabou desencadeando protestos organizados dos moradores, muitos deles idosos ou da classe trabalhadora. Em resposta, em 1995, a maior parte das restrições anteriores foram retiradas, resultando na demolição de centenas de hanok, que foram substituídas por prédios de apartamentos de tamanho médio e casas de estilo suburbano que destoavam muito do estilo elegante e das proporções das hanok.
Quando a cidade voltou atrás, seis anos depois, o estrago já tinha sido feito.
“Mais da metade do vilarejo tinha desaparecido”, diz Kim melancólica. “Seis anos foram o suficiente para arruinar o lugar.”
Nisso, pelo menos, ela e Kilburn concordam. O bairro, agora bastante promovido pela prefeitura como um distrito histórico, é invadido quase todos os dias por turistas excessivamente barulhentos. À noite, como a maior parte dos donos fica ausente, ele parece deserto.
“Esse bairro tinha vida”, diz Kilburn. “Não parecia um set de filmagem. Era genuíno. As pessoas viviam suas vidas aqui.
“Mas agora, os vizinhos nunca batem à porta. Se você precisar de uma xícara de alguma coisa emprestada, não há nenhum vizinho para procurar. Basta andar pelas ruas à noite, para ver que não há nenhuma luz em nenhuma das casas. Nenhuma criança. Nenhuma senhora subindo a rua com dificuldade, carregando verduras. Tudo isso se foi.”

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