Um a um, os fuzileiros navais se sentaram, juraram dizer a verdade e começaram a conceder entrevistas secretas discutindo um dos episódios mais horríveis da época norte-americana no Iraque: o massacre de civis iraquianos pelos fuzileiros navais na cidade de Haditha em 2005.
"Quero dizer, quer seja um resultado de nossa ação ou de outra ação, você sabe, descobrir 20 corpos, com as gargantas cortadas, você sabe, sem cabeça, 20 corpos aqui, 20 corpos ali", disse o coronel Thomas Cariker, comandante na província de Anbar na época, aos investigadores enquanto descrevia o caos no Iraque. Às vezes, diz ele, as mortes eram causadas por "ataques de granadas nos pontos de vigilância, você sabe, com morte de civis."
As 400 páginas de interrogatórios, antes guardadas como segredos de guerra, deveriam ter sido destruídas à medida que os últimos soldados norte-americanos se preparam para deixar o Iraque. Em vez disso, elas foram descobertas junto com resmas de outros documentos confidenciais, incluindo mapas militares mostrando as rotas de helicóptero e localização de radares, por um repórter do The New York Times num depósito de lixo nas cercanias de Bagdá. Um atendente estava usando os documentos como combustível para acender uma fogueira e fazer um jantar de carpa defumada.
Os documentos – muitos marcados como secretos – fazem parte da própria investigação militar interna e confirmam a maior parte do que aconteceu em Haditha, uma cidade no rio Eufrates onde os fuzileiros navais mataram 24 iraquianos, incluindo um homem de 76 anos numa cadeira de rodas, mulheres e crianças, algumas ainda de colo. Haditha se tornou um momento definitivo da guerra, ajudando a consolidar uma desconfiança perene dos iraquianos em relação aos Estados Unidos e um ressentimento de que nenhum fuzileiro naval nunca foi processado. Esta é uma das principais razões pela qual as tropas de combate dos EUA estão indo embora no fim de semana.
Mas os relatos são tão extremos, pois revelam o estresse extraordinário dos soldados que foram enviados para o país, suas frustrações e seus encontros frequentemente dolorosos com uma população que eles não entendiam. Em suas próprias palavras, o relatório documenta a natureza desumanizante da guerra, onde os fuzileiros navais passaram a ver 20 civis mortos não como algo "incomum", mas como rotina.
Civis iraquianos eram mortos o tempo todo. O major general Steve Johnson, comandante das forças norte-americanas na província de Anbar, em seu próprio testemunho, descreveu isso como "o custo de fazer negócios".
O estresse do combate deixou alguns soldados paralisados, mostraram os depoimentos. Soldados, traumatizados com o aumento da violência e se sentindo constantemente cercados, ficaram cada vez mais nervosos, matando mais e mais civis em encontros acidentais. Outros ficaram tão dessensibilizados e acostumados às mortes que atiravam deliberadamente em civis iraquianos enquanto seus colegas tiravam fotos, e eram enviados a corte marcial. Os corpos se empilhavam numa época em que a guerra ficou horrivelmente errada.
Acusações foram retiradas contra seis dos fuzileiros envolvidos no episódio de Haditha, outro foi inocentado e o último caso contra um fuzileiro naval deve ir a julgamento no ano que vem.Essa impunidade por fim envenenou qualquer chance de as forças norte-americanas continuarem no Iraque, porque os iraquianos não as deixariam ficar sem que se sujeitassem às leis e tribunais iraquianos, uma condição que a Casa Branca não poderia aceitar.
Depois de saber que os documentos haviam sido encontrados, o coronel Barry Johnson, porta-voz do exército norte-americano no Iraque, disse que muitos deles continuam confidenciais e deveriam ter sido destruídos. "Apesar da forma inadequada como eles foram descartados e chegaram à nossa posse, não temos liberdade para discutir informações confidenciais", disse ele.
Muitos dos que testemunharam nas bases no Iraque ou nos Estados Unidos eram claramente responsáveis por não ter investigado uma atrocidade e podem ter tentado moldar seus testemunhos para descartar qualquer ideia de que tentaram encobrir os eventos. Mas os relatos também mostram a consternação dos fuzileiros navais enquanto lutavam para controlar uma terra pouco familiar e seu povo no que acabou se tornando um constante estado de sítio por conta dos guerilheiros que eram quase indistinguíveis dos não combatentes.
Alguns, sentindo que estavam constantemente sendo atacados, decidiram usar a força primeiro e fazer perguntas depois. Se os fuzileiros incendiavam um prédio, eles normalmente o derrubavam. Motoristas que se aproximavam dos pontos de fiscalização sem parar eram considerados homens-bomba.
"Quando um carro não para, ele cruza a linha de fogo, os fuzileiros entram em combate e, sim senhor, há pessoas dentro do carro que são mortas e não tem nada a ver com a coisa", testemunhou o sargento major Edward T. Sax, oficial sênior do batalhão. Ele acrescentou: "tive fuzileiros que atiraram em crianças em carros e tive que lidar com eles individualmente, um a um, porque eles tinham muita dificuldade em lidar com isso."
Sax disse que perguntava aos fuzileiros responsáveis se eles sabiam que havia crianças no carro. Quando eles diziam que não, ele dizia que a culpa não era deles. Ele diz que se sentia mal pelos fuzileiros que tinham atirado, dizendo que eles carregariam um fardo para a vida toda.
"Uma coisa é matar um insurgente num conflito aberto", testemunhou Sax. "Outra coisa muito diferente – e odeio dizer isso, da forma como somos criados nos Estados Unidos – é ferir uma mulher ou ferir uma criança ou, no pior caso, matar uma mulher ou matar uma criança."
Eles não conseguiam entender porque tantos iraquianos não paravam nos postos de fiscalização e especulavam que era por causa do analfabetismo ou de problemas de visão. "Eles não têm óculos ou coisa parecida", disse o coronel John Ledoux. "Isso de fato faz pensar, por causa de algumas coisas que eles faziam para continuar andando. Você sabe, é difícil imaginar que eles simplesmente continuavam vindo, mas às vezes eles faziam isso."
Este era o ambiente em 2005, quando os fuzileiros da Companhia K do 3º Batalhão, 1º Regimento de Fuzileiros Navais de Camp Pendleton, Califórnia, chegaram na província Anbar, onde se localiza Haditha, muitos pela segunda ou terceira vez no Iraque.
A província havia se tornado um forte para sunitas sem direitos e guerrilheiros estrangeiros que queriam expulsar os Estados Unidos do Iraque, ou simplesmente matar o máximo possível de norte-americanos. Das 4.483 mortes no Iraque, 1.335 aconteceram em Anbar.
Em 2004, quatro funcionários da Blackwater foram assassinados e arrastados pelas ruas de Fallujah, tiveram os corpos queimados e pendurados numa ponte sobre o rio Eufrates. Dias mais tarde, o exército norte-americano entrou em Fallujah, e o resultado foi o caos na província de Anbar durante os dois anos seguintes à medida que os norte-americanos tentavam lutar contra os insurgentes.
O estresse do combate logo chegou ao máximo. Um conselheiro legal da unidade de fuzileiros navais parou de tomar sua medicação para transtorno obsessivo compulsivo e parou de funcionar. "Tivemos o episódio em que os fuzileiros se fotografaram atirando nas pessoas", testemunhou o coronel R. Kelly, dizendo que eles chamaram imediatamente o Serviço de Investigação Criminal Naval e "confiscaram a máquina deles". Ele disse que os soldados envolvidos foram enviados à corte marcial.
Tudo isso estabeleceu o cenário para o que aconteceu em Haditha em 19 de novembro de 2005. Naquela manhã, um comboio militar de quatro veículos estava a caminho de um posto militar em Haditha quando um dos veículos foi atingido por uma bomba na beira da estrada. Vários fuzileiros saíram para socorrer os feridos, incluindo um que eventualmente morreu, enquanto outros procuraram insurgentes que poderiam ter montado a bomba. Dentro de algumas horas, 24 iraquianos, incluindo um homem cego de 76 anos de idade e crianças de 3 a 15 anos – foram mortos, muitos dentro de suas casas.
Moradores da cidade sustentam que os fuzileiros reagiram exageradamente ao ataque e atiraram em civis, dos quais só um estava armado. Os fuzileiros disseram que acreditavam estar sendo atacados. Quando os relatos iniciais chegaram dizendo que mais de 20 civis haviam sido mortos em Haditah, os fuzileiros que os receberam disseram que não ficaram surpresos pelo número alto de mortes civis.
O oficial chefe K.R. Norwood, que recebeu os relatos do local, no dia dos eventos em Haditha, e os transmitiu aos comandantes, testemunhou que 20 civis mortos não era um número incomum. "Quer dizer, não era excepcional, baseado na área eu não diria que era excepcional, senhor", disse Norwood. "E esta é apenas a minha definição. Não que eu ache que uma vida não vale, é que..."
Um investigador perguntou ao oficial: "quer dizer excepcional ou notável em termos de algo que teria lhe chamado a atenção e que você teria dito imediatamente: 'preciso ter mais informações sobre isso. Há muitas mortes'." "Não na época, senhor", testemunhou o oficial.
Johnson, comandante das forças norte-americanas na província de Anbar, disse que não se sentiu compelido a voltar e examinar os fatos porque eles faziam parte de um padrão contínuo de morte de civis. "Aquilo acontecia o tempo todo, não necessariamente em MNF-Oeste o tempo todo, mas por todo o país", testemunhou Johnson, usando uma sigla militar para as forças de coalizão no oeste do Iraque.
"Então, você sabe, talvez – imagino que se eu estivesse sentado aqui em Quantico e ouvisse que 15 civis haviam morrido eu teria ficado surpreso e chocado e teria tomado mais providências para investigar", testemunhou, referindo-se à Base de Fuzileiros Navais em Quantico, Virginia. "Mas naquele momento, senti que aquilo era – ou costumava ser, porque qualquer motivo, parte daquela ação e senti que era apenas o custo de atuar naquela luta em particular."
Quando os fuzileiros chegaram no local para avaliar o número de corpos, pelo menos um fuzileiro achou que seria um bom momento para tirar fotos para ele mesmo guardar. "Eu sei que um fuzileiro estava tirando fotos apenas para tirar fotos e eu disse a ele para deletar todas elas", testemunhou um primeiro tenente identificado como M.D. Frank. "Ele estava comigo, senhor, e ele estava tirando algumas fotos e eu disse: 'Sargento, delete essas fotos porque você está simplesmente se envolvendo num mundo de problemas.' Então ele respondeu, 'Entendido, senhor'."
Os documentos revelados pelo The Times – que incluem bilhetes escritos a mão pelos soldados, documentos de fuzileiros garantindo seu direito contra a auto-incriminação, diagramas de onde as mulheres e crianças mortas foram encontradas, e fotos do local onde o fuzileiro foi morto pela bomba na estrada no dia do massacre – continuam confidenciais.
Num encontro com a mídia em outubro, antes que os militares ficassem sabendo sobre a descoberta dos documentos, o comandante dos EUA encarregado da logística da retirada disse que os arquivos das bases foram transferidos para outras partes do exército ou incinerados. "Nós não colocamos documentos oficiais no lixo", disse o comandante, major general Thomas Richardson, num encontro na Embaixada dos EUA em Bagdá.
Os documentos foram empilhados em trailers militares e transportados para o ferro-velho por uma empresa iraquiana que estava tentando vender o que havia sobrado das bases norte-americanas, disse o funcionário do ferro-velho. O atendente disse que não tinha ideia sobre o que eram os documentos, só que eles eram importantes para os norte-americanos.
Ele disse que ao longo de várias semanas queimou dezenas e dezenas de pastas, transformando em cinzas mais histórias não contadas sobre a guerra. "O que podemos fazer com isso?", disse o atendente. "Essas coisas não valem nada para nós, mas entendemos que são importantes e que é melhor queimá-las para proteger os norte-americanos. Se eles estão indo embora, significa que seu trabalho terminou aqui."
Nenhum comentário:
Postar um comentário