O governo do Afeganistão está reescrevendo a história, literalmente.
O Ministério de Educação do país aprovou um novo currículo de História para as escolas que apaga quase quatro décadas do passado do país, devastado pela guerra.
O governo diz que livros escolares baseados no novo currículo vão ajudar a unificar um país tradicionalmente polarizado, com divisões étnicas e políticas.
Mas críticos acusam os ministros de tentar apaziguar o Talebã e outros grupos poderosos ao apagar a história que os retrata de maneira não elogiosa.
Esses críticos dizem que o governo está tentando conquistar o Talebã antes que as forças dos EUA e da Otan deixem o país.
O Afeganistão está entrando em um altamente incerto período pós-Otan, durante o qual são esperados acordos complicados com o Talebã e outros grupos.
Os últimos 40 anos no Afeganistão foram alguns dos mais turbulentos do mundo.
Mas os golpes sangrentos dos anos 1970, a invasão soviética em 1979, os regimes comunistas em Cabul apoiados por Moscou e os incontáveis abusos de direitos humanos cometidos pela polícia secreta foram todos apagados do currículo de História, dizem os críticos.
Tampouco há muita menção à sangrenta guerra civil entre facções mujahedin que arrasaram Cabul nos anos 1990, deixando cerca de 70 mil mortos.
Aquele conflito deu origem ao Talebã --do qual não há muita menção, como ocorreu com às forças lideradas pelos EUA que os tiraram do poder e permanecem no país por mais de uma década.
Um jornalista afegão, que não quis ser identificado por razões de segurança, disse à BBC que o surpreendeu o fato de a guerra civil e o regime do Talebã terem sido resumidos em apenas algumas poucas linhas.
"Não há menção à miséria (que a guerra) trouxe. Não há menção ao fato de Cabul ser a zona da morte. Os livros dizem que o Mulá Omar foi removido do poder em 2001, sem explicar quem era o Mulá Omar", afirma.
"Não há menção à presença dos EUA e da Otan. É como se alguém estivesse tentando esconder o sol com dois dedos."
O Ministério da Educação nega sugestões de que estrangeiros tiveram algum papel na definição do novo currículo, e oficiais militares americanos afirmam que não discutiram o conteúdo dos livros, alguns pagos com dinheiro dos EUA.
No entanto, um porta-voz do Exército americano em Cabul, David Lakin, disse que conselheiros culturais americanos "revisaram os livros de estudos sociais para ver se não havia material inapropriado, como incitação à violência ou discriminação religiosa".
A BBC visitou duas escolas nos arredores de Cabul onde os novos livros já foram introduzidos.
Em um delas --em Sarubi, a 75km de Cabul-- a reportagem sentou em uma sala de aula e ouviu o professor pedir a um de seus alunos que lesse um trecho de seu novo livro de História.
O capítulo era sobre Sardar Mohammad Daud Khan, primeiro-ministro de 1953 a 1963 e presidente do país 10 anos depois. Falava sobre a ascensão de Daud Khan, mas silenciou sobre os detalhes de como ele derrubou a monarquia de seu primo, Mohammed Zahir Shah.
Os capítulos seguintes também não fazem menção aos numerosos golpes sangrentos que agitaram o cenário político do país, aos regimes apoiados por Moscou, incluindo o do presidente Najibullah, à guerra civil que começou após sua renúncia ou à ascensão em 1996 do Talebã e sua subsequente queda.
"O que aconteceu em Sarubi durante a invasão soviética?", a reportagem perguntou a um aluno de 11 anos que ouvia atentamente à aula.
"Os russos queriam remover o Islã do Afeganistão. Muitas pessoas foram mortas, aldeias foram bombardeadas. Milhões foram forçados a se refugiar no Paquistão", disse o garoto.
"Como você sabia? Essa informação não está em seu livro de História."
"Meus pais e professores me contaram", disse o menino, inocentemente.
O professor, que também pediu para não ter seu nome revelado, diz que os novos livros vão privar uma geração inteira de conhecimento do passado.
"Como a penetração da internet é limitada, assim como o contato com o mundo exterior, as crianças são mais dependentes de livros escolares no Afeganistão do que em qualquer outro lugar do mundo", disse o professor.
"Mas agora que o governo decidiu apagar os últimos 40 anos turbulentos dos nossos livros de História, milhões de crianças nunca vão saber por que e como o Afeganistão se transformou no país em que hoje vivemos."
Assim como em Sarubi, as planícies de Shomali, ao norte de Cabul, também sofreram com os excessos do Exército Vermelho soviético e, depois, do Talebã.
A agitada cidade de Charikar era, até 12 anos atrás, o retrato da devastação. Acusada de apoiar a Aliança do Norte, a cidade sofreu a violência do Talebã.
"Milhares de árvores foram derrubadas, campos e vinhedos queimados, casas destruídas e pessoas mortas", diz Abdul Qodoas, professor de História na escola Mirwais.
Mas a política de terra arrasada do Talebã também não é mencionada nos novos livros de História.
"Para os alunos, é importante estudar todos os regimes políticos, quer seu governo tenha sido bom ou ruim", diz Qodoas.
"Um dos principais objetivos de estudar História é não repetir os erros do passado. Se os alunos não aprenderem sobre a violência do passado, como vão evitá-la no futuro?"
O ministro de Educação, Farooq Wardak, diz que a decisão de apagar parte da história dos livros é baseada no interesse maior do país.
"Há centenas e milhares de questões sobre as quais há desacordo na nação", ele disse.
"Minha responsabilidade é trazer união, e não desunião, ao país. Eu não vou apoiar uma agenda divisiva na Educação."
"Agora, se eu estiver escrevendo algo sobre o que não há consenso nacional, eu estarei levando a discórdia, até mesmo a guerra, à aula e à escola do Afeganistão. Eu jamais farei isso."
Mas para muitos outros, o que foi feito ao currículo é simplesmente decepcionante. Como você pode avançar se, em vez de confrontar o passado, você o varre para baixo do tapete?, questionam os críticos.
"Cabul foi destruída durante a guerra civil, milhares de pessoas foram mortas", disse uma integrante do Parlamento, também em condição de anonimato.
"Durante o regime do Talebã foram cometidas atrocidades contra as mulheres. Eles foram proibidas de trabalhar e ir à escola. Centenas de mulheres foram apedrejadas até a morte por acusações de adultério. Não há nada sobre isso nos livros escolares. Não estamos escondendo a verdade das crianças do país?"
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