segunda-feira, 6 de agosto de 2012


O véu azul turquesa de Razia Hasani emoldura seu rosto. É seu último dia de aula e a jovem estudante percorre as alamedas sombreadas da Universidade de Cabul. Ela está descontraída, sorridente, falante e sonha com o futuro. Razia encarna um Afeganistão emergente, uma mutação sociológica muitas vezes ocultada pelas imagens marciais em torno da insurreição dos talebans. A jovem pertence à comunidade dos hazaras, uma minoria étnica de confissão xiita em pleno despertar, como mostra sua presença maciça (tanto de rapazes quanto de moças) nas instituições de ensino do país. Uma simples caminhada pelo campus da Universidade de Cabul basta para se ter uma dimensão do fenômeno: a maioria dos estudantes com quem cruzamos são hazaras, sendo que essa comunidade representa somente cerca de 15% da população total. Essa super-representação é surpreendente, especialmente no que diz respeito às meninas. Razia explica o porquê: “Os hazaras sofreram muito no passado. A única maneira de reconquistar nossa liberdade é a educação.” Os hazaras, que herdaram dos mongóis os olhos amendoados que os distinguem nitidamente das outras etnias afegãs, chegaram ao Afeganistão provavelmente por volta do século 14 e por muito tempo foram oprimidos pelos soberanos pasthuns do país. No final do século 19, o rei Addul Rahman chegou a declarar uma “guerra santa” contra esses xiitas “hereges” concentrados na região central do Hazarajat (terra dos hazaras) --cuja principal cidade é Bamiyan--, submetendo-os à escravidão. Fugindo das perseguições, muitos hazaras se exilaram então em Quetta, no Paquistão, ou em Mashad, no Irã, onde seus descendentes formam hoje grandes comunidades.

Sentado de pernas cruzadas sobre o gramado, Rohullah Nasir desfruta da suavidade da noite que cai sobre Cabul. Ele é estudante de jornalismo e pretende ingressar numa carreira na televisão. “A educação”, ele diz, “é um meio de garantir nosso futuro”. “Garantir”: a palavra aparece de maneira recorrente --ou até obsessiva-- na boca dos jovens hazaras quando lhes perguntamos sobre sua visão de futuro, revelando o sentimento de fragilidade que continua a habitar sua comunidade. Os estudantes hazaras, que de forma geral já estão representados de forma maciça na universidade, estão ainda mais presentes nas disciplinas associadas às ciências sociais, humanidades e belas artes. Nessas áreas a proporção chega a 70% ou até 80%. “Isso se deve à vontade de compreender a sociedade e a cultura para depois poder modificá-las”, diz Ali Amiri, professor de estudos islâmicos no Instituto Ibn Sina, uma universidade particular. Assim, mais do que os outros grupos étnicos do Afeganistão (pashtuns, tadjiques, uzbeques...), os hazaras seriam mais interessados pela transformação social e abertos às ideologias de emancipação. E seria isso por acaso? Dentro da extrema esquerda dos anos 1970, os círculos maoístas recrutavam principalmente entre os jovens hazaras. Como se revolucionários hazaras só pudessem ser atraídos pela mais radical das revoluções. Há muito tempo que a comunidade hazara passa por aventuras políticas. Depois da sedução esquerdista, da tentação khomeinista e do jihad antissoviético, quem ascendeu foi o etnonacionalismo, que culminou com a guerra civil entre fações mujahidins desencadeada pelo colapso do regime comunista em 1992. Em 2001, os hazaras receberam com entusiasmo a queda do regime taleban (1996-2001), cujo sunismo radical lhes valeu novas perseguições. De uns dez anos para cá, eles têm feito lealmente o jogo da “reconstrução” pós-taleban sob a proteção da comunidade internacional, uma presença externa que lhes garante a “segurança” à qual eles tanto aspiram. Esse novo contexto também permitiu que os hazaras criassem autonomia em relação ao Irã, que, valendo-se de seu status de pátria do xiismo, tentou em vão instrumentalizá-los contra os americanos. “No passado, os hazaras afegãos podem ter atuado como agentes do Irã”, admite Ali Amiri, professor do Instituto Ibn Sina. “Mas hoje eles possuem uma identidade própria, que se distingue da única referência xiita.” Mas essa emancipação política dos hazaras continua sendo um processo difícil. Isso porque ela alimenta a suspeita de outros grupos étnicos afegãos, que estão começando a se preocupar com sua entrada nos meios intelectuais e econômicos. Menos conservadores que o resto da sociedade afegã quanto à questão das mulheres, os hazaras deixam suas jovens se lançarem em carreiras profissionais. A crescente visibilidade da comunidade causa atritos principalmente com os pashtuns, como se os dois grupos agora estivessem em uma trajetória de colisão. Os conflitos linguísticos que se exacerbam na universidade sobre o lugar a ser dado ao pashto e ao dari (a versão afegã do farsi, falado pelos hazaras e pelos tadjiques) ilustra bem isso. É como uma revolução silenciosa. Os pashtuns ficam tensos ao verem sua hegemonia política herdada da história --eles, que fundaram a monarquia afegã no meio do século 18-- sendo desafiada por minorias cada vez mais seguras de si mesmas e que reivindicam sua parte do Estado. A fissura que vem se abrindo nas profissões intelectuais é particularmente perigosa, pois ela acabará tendo um desdobramento político. Niamatullah Ibrahimi, um analista hazara, ressalta que “as regiões pashtuns do sul e do leste, mais afetadas pela guerra, foram prejudicadas no acesso à educação, ao passo que, no mesmo momento, os hazaras que viviam em áreas mais tranquilas escolarizaram em massa suas crianças. A distância entre uma espécie de estagnação do meio pashtun e a mudança social em andamento entre outros grupos se aprofundou”. Num momento em que a Otan está iniciando sua saída do Afeganistão, e considerando que a volta gradual dos talebans (majoritariamente pashtuns) ao poder não está mais só na teoria, essa configuração étnica em pleno processo de redefinição colocará o Afeganistão em uma zona de altas turbulências.

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