Farhad Abdul tenta dormir com a luz do quarto acesa e os olhos arregalados, porque assim que os fecha se vê de volta à sua loja no centro de Cabul, e são 11h30 do dia 8 de setembro.
Ele está sentado atrás da sua mesa, no escritório, uma salinha com uma parede de vidro e uma visão que ele diz que nunca mais esquecerá.
As habituais crianças que brincam na rua estão em frente à sua locadora de veículos, no coração do bairro militar e diplomático da capital. Khorshid, 15, é uma sensação do skate, e sonha em ser campeã mundial feminina.
Sua irmã Parwana, 11, tem sonhos ainda maiores: quer ser médica.
Perto dali está a irmãzinha delas, Mursal, 7, que tem olhos grandes e fala inglês suficientemente bem para amaciar os corações dos soldados americanos que passam, cedendo ao pedido de "just one dollar, mister" ("só um dólar, senhor").
Com elas estão seus amigos Nawab, 17, Mohammad Eesa, 16, Elyas, 15, e Nawal, 17 -todos eles colegas de skate e de mendicância nas ruas.
É o território dessa garotada que aparece diariamente depois da escola e em feriados, como o de 8 de setembro, que marca o assassinato de um líder anti-Taleban. Eles vendem lenços e chiclete velho, mas acima de tudo pedem esmolas.
Farhad observa a cena, distraído, quando um estranho entra em cena com uma mochila nas costas. Farhad acha que ele tem 15 ou 16 anos.
As crianças cercam o estranho, temendo que ele seja um concorrente na disputa pelo espaço e querendo ver o que ele carrega. A mochila explode.
Farhad se vê caído no chão, atrás da mesa, com um zumbido nos ouvidos. Ele sangra em vários lugares, mas percebe que não está muito ferido.
Faz uma oração agradecendo ao vendedor que o convenceu a revestir o interior da vitrine com uma película que evita estilhaços. "Se não", disse ele, "eu seria um homem morto, com certeza".
As crianças não tiveram a mesma sorte. O atentado suicida -o 55° neste ano no Afeganistão, e já houve outros depois disso- matou quatro delas e também três adultos.
Elyas, que havia se afastado um pouco, ficou caído na rua, ferido. Olhando ao redor, em meio à paisagem de sangue e cadáveres, ele chegou a uma repentina e terrível conclusão:
"Nenhum dos meus amigos da minha idade está vivo", disse o menino. "Estou completamente sozinho."
Mais uma vez, crianças inocentes foram vítimas da mais indiscriminada das armas.
Como os alvos policiais e militares tiveram sua defesa reforçada desde que os insurgentes passaram a intensificar o uso de homens-bombas, em 2006, cada vez mais as vítimas são transeuntes civis, quase sempre incluindo crianças.
O Afeganistão tem uma das maiores taxas mundiais de crescimento populacional e as crianças estão presentes em qualquer espaço público.
Investigadores de direitos humanos estimam que 865 civis tenham sido mortos ou feridos em atentados, suicidas ou não, nos primeiros oito meses deste ano; 38% eram crianças.
Farhad, 24, não se lembra do momento exato da explosão. No piso do estabelecimento dele, na rua Ariana, ele se surpreendeu por não estar morto.
O atentado havia sido a apenas nove metros. "Por todo o chão daqui havia mãos, pés e pedaços de carne", contou ele dias depois.
Ao sair, ele viu tantos pedaços de corpos, numa tamanha carnificina, que era impossível dizer quem era quem.
A maioria das vítimas não tinha mais como ser ajudada. Policiais limparam o local e mandaram os restos humanos para dois hospitais.
O Taleban divulgou nota dizendo que seu alvo era uma casa protegida da CI e negando que o homem-bomba fosse um adolescente.
Só dias depois foi possível esclarecer quem havia morrido e quem sobrevivera.
O saldo final ficou em sete mortos e quatro feridos, sendo um em estado grave, internado num hospital.
À margem da cena da explosão, Mursal gritava e chorava, mas estava ilesa. Ela quis procurar suas irmãs, mas a polícia não deixou.
Um pouco depois, outro skatista achou o corpo de Khorshid num necrotério e ligou para a mãe dela, Bibi Hawa.
"Achamos que Parwana estivesse assustada e escondida em algum lugar, mas aí, à noite, recebemos uma ligação", disse Hawa. O corpo da menina havia sido achado no necrotério de outro hospital, junto com o genro de Hawa, Assad, 22.
Mohammad Eesa e Nawab, amigos das irmãs skatistas, também morreram.
"Minhas filhas eram atletas e estudantes", disse o pai delas, Mohammad Zaman.
"Eu disse à minha mulher: vou armar uma barraca perto dos túmulos das minhas filhas e vou morar lá de agora em diante", acrescentou entre lágrimas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário