O Estado de decrepitude de um cemitério que abriga os restos mortais de
centenas de membros de uma das mais famosas forças de combate da China
durante a Segunda Guerra Mundial reacendeu as dúvidas sobre como o país
honra alguns de seus veteranos.
Em agosto passado, as sepulturas de militares chineses que serviram
nessa força de combate, conhecida como Flying Tigers (Tigres Voadores),
foram redescobertas numa encosta coberta de lixo da cidade de Kunming,
que é capital da província de Yunnan e está localizada no sul da China.
Mas, apesar das promessas oficiais feitas à época, segundo as quais o
cemitério seria restaurado, pouco foi feito até o momento.
A Segunda Guerra Mundial continua sendo um assunto delicado no Leste
Asiático, e a China tem se queixado frequentemente do que considera
demonstrações insuficientes de arrependimento por parte do Japão pelo
sofrimento infligido a seus vizinhos chineses. Ao mesmo tempo, Pequim
subestimou partes da própria história da China durante a guerra,
especialmente as contribuições do governo nacionalista.
Nos últimos anos, os líderes comunistas da China promoveram um maior
reconhecimento do papel dos nacionalistas na luta contra o Japão, e
grupos de voluntários restauraram locais relacionados ao período,
captaram recursos e se envolveram para ajudar os últimos veteranos
sobreviventes.
Poucos combatentes da época da guerra foram tão celebrados quanto os
Flying Tigers. A unidade, oficialmente conhecida como Grupo Voluntário
Norte-americano (American Volunteer Group), era formada por pilotos
norte-americanos reformados que foram organizados com a aprovação
sigilosa do presidente Franklin D. Roosevelt para lutar pelo exército
chinês nos meses que antecederam a entrada dos Estados Unidos na Segunda
Guerra Mundial. Em aeronaves decoradas com um tubarão de boca aberta,
os pilotos combateram contra as forças japonesas na China e na Birmânia.
Depois que o ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941,
deixou a América desnorteada, o sucesso inicial dos Flying Tigers contra
os combatentes japoneses proporcionou um estímulo fundamental para o
moral dos aliados. "Uma esperança resplandecente surgiu após três
catastróficos meses de guerra", escreveu a revista Life sobre a unidade,
em março de 1942. Posteriormente, naquele mesmo ano, o ator John Wayne
interpretou em Hollywood o papel do líder do grupo no filme "Flying
Tigers".
De certa maneira, os Flying Tigers estão passando por um renascimento
na China. O The Flying Tigers Heritage Park está sendo construído em
Guilin, uma base de guerra localizada na província de Guangxi. No ano
que vem, John Woo, cineasta nascido em Hong Kong e diretor de filmes de
ação como "The Killer – O Matador", "Penhasco Vermelho" e "Missão
Impossível 2", deve começar a trabalhar em um filme e uma minissérie
sobre os Flying Tigers.
O Museu Flying Tigers de Kunming foi inaugurado em dezembro do ano
passado. Ao sul da cidade de Kunming, no Lago Dian, os pesquisadores
estão procurando os destroços de um avião P-40 dos Flying Tigers que
caiu durante um treinamento realizado em 1942.
A menos de 10 quilômetros de distância, os túmulos de cerca de 500
chineses, entre tradutores, membros da tripulação de solo e de outros
associados que atuavam na unidade, seguem sendo negligenciados em
Changchun Hill. O jornal The City Times, de Kunming, informou em 12
agosto passado --três dias antes do 68º aniversário do fim da guerra na
Ásia-- que as sepulturas haviam sido violadas e que os restos mortais
tinham sido espalhados, com pedaços de caixões de madeira apodrecendo na
superfície do terreno. A reportagem foi amplamente divulgada por
jornais chineses e por vários sites.
No Japão, alguns membros do gabinete marcaram o aniversário da derrota
do seu país com uma visita ao Santuário de Yasukuni, onde vários
criminosos de guerra foram imortalizados juntamente com 2,5 milhões de
vítimas japonesas do conflito. O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe,
não compareceu ao evento, mas enviou uma oferenda e fez um discurso no
qual não pediu desculpas pelo sofrimento infligido pelo Japão aos
chineses. Mais uma vez, os líderes chineses expressaram sua raiva em
relação às palavras e ações dos líderes japoneses.
Mas alguns chineses dizem que, apesar de seu governo se concentrar no
comportamento do Japão, ele não tem respeitado a própria história da
China.
"Criminosos de guerra japoneses são endeusados como heróis nacionais no
Santuário de Yasukuni, mas os Flying Tigers, que são os heróis de
guerra chineses, são vistos como lixo para ser descartado em uma
colina", escreveu o poeta e romancista chinês Bei Cun. "Sete décadas
atrás, a China era uma vencedora. Mas sete décadas depois, a China está
derrotada, e derrotada de uma maneira mais trágica, pois essa derrota
faz com que as futuras gerações duvidem dos valores do país, da
importância do sacrifício e da dignidade da vida".
O abandono do cemitério de Kunming tem raízes na calamitosa história do
pós-guerra da China. A rendição do Japão, em 1945, encerrou a
desconfortável aliança de guerra firmada entre as forças nacionalistas
de Chiang Kai-shek e os comunistas --e fez com que os dois lados
voltassem suas armas um contra o outro. A guerra civil terminou com a
vitória comunista em 1949 e o recuo dos nacionalistas para Taiwan.
Durante décadas, o governo comunista retratou os nacionalistas como
inimigos. Os veteranos nacionalistas que permaneceram no continente
sofreram perseguições, e até mesmo aqueles que morreram lutando contra
os japoneses foram tratados como inimigos. Cemitérios instalados em
cidades como Tengchong, onde houve intensos combates durante a guerra,
foram vandalizados durante a Revolução Cultural.
Nos últimos anos, a liderança do Partido Comunista da China começou a
reconhecer os esforços de guerra dos nacionalistas. Em um discurso
proferido em 2005, o presidente da China à época, Hu Jintao, reconheceu
as contribuições dos nacionalistas. Os veteranos nacionalistas chineses
que sobreviveram à guerra foram premiados com medalhas comemorativas
para agradecer pelos serviços prestados durante o conflito. Neste verão,
o governo chinês se comprometeu a ajudá-los a receber benefícios
previdenciários.
Grupos de voluntários lideraram os esforços de reconhecimento muito
antes de o governo chinês se envolver nessa causa. Eles rastrearam os
veteranos nacionalistas sobreviventes, reuniram doações para ajudar com
as despesas deles e procuraram cemitérios abandonados.
O cemitério de Kunming foi originalmente instalado perto do Aeroporto
de Wujiaba e já chegou a ter cerca de 800 sepulturas. Depois da guerra,
os restos mortais de mais de 200 norte-americanos foram transferidos
para os Estados Unidos, de acordo com historiadores chineses. No início
da década de 1950, os túmulos chineses foram abertos e os camponeses
usaram carros de boi para remover os caixões e as lápides e instalá-los
em um local a 4 km de distância para dar lugar a um armazém, informou a
revista Sanlian Life em 2010. Em seguida, no início do Grande Salto
Adiante, em 1957, quando o país embarcou em uma desastrosa campanha de
coletivização, as lápides foram removidas para serem utilizadas na
construção de reservatórios.
Depois que o cemitério foi redescoberto por voluntários, em 2007, o
governo local disse que construiria um local adequado para os restos
mortais dos veteranos. Mas essa iniciativa foi frustrada pelas normas de
incorporação e por questões relacionadas à definição dos proprietários
das terras, de acordo com o jornal City Times. "A colina está
completamente igual ao que era antes, mas o estado do cemitério está
ainda mais caótico", disse o jornal.
Os membros do Instituto de Pesquisa dos Flying Tigers da província de
Yunnan, grupo de voluntários de Kunming que divulgou o estado do
cemitério, recusaram pedidos de entrevistas.
Ge Shuya, pesquisador independente de temas históricos que atua na
província de Yunnan, disse que os atrasos foram resultado de um debate
sobre como batizar o cemitério.
Um cemitério com o nome de "Flying Tigers" atrairia mais atenção, disse
Ge, mas seria incorreto. Como os corpos dos soldados norte-americanos
que fizeram parte da unidade foram removidos há muito tempo, o local não
deve ser considerado um cemitério dos Flying Tigers, disse Ge. "O
motivo para o local ainda não ter sido protegido, acredito eu, está
relacionado ao fato de que existem pessoas que ainda querem batizar o
cemitério com o nome dos Flying Tigers", disse ele.
Em 15 de agosto passado, Li Yulian, autoridade do Departamento de
Assuntos Civis do distrito de Kunming, disse à agência de notícias
estatal Xinhua que o governo tomou as medidas básicas para proteger o
cemitério, mas que ele ainda está em más condições depois de décadas de
negligência. Ela prometeu que o governo vai acelerar a recuperação do
local. Mas, segundo ela, o cemitério será dedicado à Força Aérea
chinesa, e não aos Flying Tigers.
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