"Você está sem emprego? Não tem onde morar? Não tem nada para comer?", pergunta o anúncio online. "Venha para Fukushima".
Esse texto sombrio que tem como público-alvo os japoneses mais pobres e
foi publicado por uma empresa que está buscando funcionários para
trabalhar na usina nuclear de Fukushima Daiichi, devastada por um
terremoto seguido por um tsunami, é um dos mais claros indícios da busca
cada vez mais problemática por pessoas dispostas a realizar a perigosa
tarefa de desativar o local.
A empresa Tokyo Electric Power Co.,
que opera a usina e é conhecida como Tepco, não tem dado muita atenção
ao problema e deixou o complexo processo de limpeza a cargo de uma mão
de obra que, em geral, é mal gerida, mal treinada, se sente
desmoralizada e, em alguns casos, não tem nenhuma qualificação e já
cometeu alguns erros perigosos.
Ao mesmo tempo, a Tepco está
investindo seus recursos em outra usina, a de Kashiwazaki Kariwa, cujas
atividades a empresa pretende reiniciar este ano como parte dos esforços
do governo japonês para voltar a utilizar a energia nuclear, três anos
após o segundo pior desastre nuclear do mundo. Alguns membros do
conselho do órgão regulador do setor nuclear do Japão criticaram a
medida.
Em Fukushima, a medida se traduziu em empregos mais
escassos e com salários mais baixos, o que afugentou os trabalhadores
qualificados. Por isso, segundo informaram operários e outras pessoas,
só ficaram em Fukushima funcionários que geralmente são contratados por
empresas de recrutamento aventureiras que têm pouco conhecimento técnico
e sobre as normas de segurança --isso sem falar na preocupação quase
inexistente em relação à contratação de pessoas desesperadas. A polícia e
ativistas sindicais dizem que algumas das empresas de recrutamento mais
agressivas mantêm laços com a máfia local.
Autoridades do órgão regulador do setor nuclear, prestadores de
serviços e mais de 20 trabalhadores que atuam ou atuaram no local e
foram entrevistados nos últimos meses dizem que a deterioração das
condições de trabalho em Fukushima é a principal causa de uma série de
grandes vazamentos de água contaminada e de outros erros constrangedores
que já prejudicaram o meio ambiente e, em alguns casos, colocaram
trabalhadores em perigo. Na pior das hipóteses, temem os especialistas,
esses trabalhadores vulneráveis poderiam provocar um derramamento maior
ou outro vazamento de material radioativo.
"Há uma crise de mão
de obra na usina", disse Yukiteru Naka, fundador da Tohoku Enterprise,
prestador de serviços e ex-engenheiro da usina, que trabalhava para a
General Electric. "Nós somos obrigados a fazer mais com menos, como
bombeiros que são orientados a usar menos água apesar de o fogo ainda
estar queimando".
Essa crise ficou especialmente evidente
durante uma manhã escura de outubro do ano passado, quando um grupo de
trabalhadores temporários foi enviado para remover as mangueiras e
válvulas do local como parte de uma atualização do sistema de
purificação de água da usina, que já deveria ter sido realizada há muito
tempo.
De acordo com documentos apresentados às autoridades
reguladoras pela Tepco, a equipe recebeu apenas um briefing de 20
minutos do seu supervisor e não recebeu nenhum diagrama sobre o sistema
que deveria ser consertado nem instruções sobre os procedimentos de
segurança --tipo de procedimento que, segundo um ex-supervisor da usina,
é inconcebível. Pior ainda: os trabalhadores não foram avisados de que a
mangueira próxima daquela que eles deveriam remover estava cheia de
água contaminada com césio radioativo.
Enquanto os homens caminhavam desajeitadamente vestidos com seu
volumoso traje de proteção, o supervisor deles, que é responsável por
desempenhar múltiplas tarefas no local, saiu para verificar outra
equipe. Os trabalhadores escolheram a mangueira errada para remover e
uma torrente de água radioativa começou a vazar. Em pânico, os homens
colocaram as mãos enluvadas na água para tentar interromper o vazamento,
espalhando a água sobre si mesmos e sobre outros dois trabalhadores que
correram para ajudá-los.
Apesar de os trabalhadores terem sido
expostos de maneira significativa à água contaminada, Shigeharu Nakachi,
especialista que estuda os efeitos da poluição sobre a saúde das
pessoas, disse que o incidente não foi suficiente para causar doenças
relacionadas à radiação. Ainda assim, ele disse que exposições como essa
devem "deve ser evitadas a todo o custo".
A Tepco se recusou a
informar o tipo de experiência que esses trabalhadores possuem para
desempenhar essas tarefas, mas, de acordo com documentos apresentados às
autoridades reguladoras, a empresa que os recrutou assinou um contrato
relacionado a esse trabalho apenas uma semana antes do vazamento. A
Tepco também se recusou a dizer se a prestadora de serviços contratou os
trabalhadores por meio de empresas de recrutamento, prática que
geralmente é considerada ilegal em usinas nucleares, ainda que seja
amplamente aceita.
Em resposta a perguntas enviadas por escrito,
a Tepco disse que "não está em posição de comentar sobre as práticas de
contratação" de suas prestadoras de serviços.
A Tepco também se
recusou a divulgar um relato detalhado sobre um vazamento recente
ocorrido na usina --o pior vazamento em seis meses--, que foi registrado
quando os trabalhadores que enchem os tanques de armazenamento de água
contaminada desviaram essa água remotamente para o tanque errado. Mas
mesmo as poucas informações disponíveis indicam que houve uma confusão
por parte dos trabalhadores.
Eles ignoraram os alarmes que
alertaram para o transbordamento do tanque devido ao fato de muitos
desses tanques estarem próximos de sua capacidade máxima de
armazenamento e, por isso, os alarmes disparam o tempo todo. Ninguém
notou que o nível de água do tanque que deveria estar recebendo a água
não estava aumentando.
"Esse foi um erro extremamente básico",
disse Toyoshi Fuketa, encarregado da Autoridade Reguladora do Setor
Nuclear, durante uma audiência recente. "Se um alarme de incêndio
disparasse em sua casa, você ficaria preocupado, o que dirá em uma usina
nuclear".
O vice-presidente da área de energia nuclear da
Tepco, Masayuki Ono, explicou posteriormente que "não nos ocorreu ir até
o local para verificar a situação".
No cerne dos problemas da
usina está o sistema de contratação do setor nuclear, que utiliza várias
empresas intermediárias. Segundo os críticos vêm alertando há muito
tempo, esse sistema permite que as operadoras de grande porte
responsáveis pela administração das usinas nucleares se distanciem dos
problemas surgem nessas plantas. De acordo com esse sistema de
contratação, prestadoras de serviços são contratadas e dividem o
trabalho com várias outras subcontratadas. Na parte inferior dessa
cadeia, submetidos às tarefas mais insalubres, estão os chamados
"ciganos nucleares" – operários itinerantes atraídos pelos bons salários
que, em geral, são pagos por esse setor.
O acidente só serviu
para ampliar os problemas desse sistema de contratação. De acordo com os
registros da empresa, os trabalhadores temporários da Fukushima Daiichi
estão expostos, em média, a radiações mais de duas vezes superiores
àquelas a que são submetidos os funcionários fixos da Tepco. Segundo
afirmam muitas pessoas, esse sistema de subcontratação, no qual as
tarefas são divididas entre várias empresas, também faz com que haja
relativamente pouca supervisão por parte da Tepco.
Em uma
entrevista recente, uma porta-voz da Tepco disse que a empresa avalia
regularmente as empresas terceirizadas e exige que elas forneçam a seus
trabalhadores uma aula sobre noções básicas de radiação. (A porta-voz
negou as acusações generalizadas de fraude feitas por alguns
trabalhadores.)
Mas, em uma entrevista coletiva concedida no mês
passado, o chefe do órgão regulador do setor nuclear, Shunichi Tanaka,
disse: "há uma estrutura de subcontratação que permite que até mesmo os
funcionários das empresas terceirizadas ou quarterizadas trabalhem no
local, e a Tepco não tem uma visão clara sobre o que está acontecendo no
local".
Naka, o prestador de serviços que mencionou a crise de
mão de obra em Fukushima, disse que muitos de seus melhores engenheiros –
incluindo aqueles que combateram as explosões e os incêndios nos
primeiros dias da crise – ou pediram demissão ou não podem trabalhar na
usina por já terem alcançado os limites legais de exposição à radiação
durante o período de um ano.
Yoshitatsu Uechi é uma das pessoas
que se apresentou após a divulgação de anúncios que visavam contratar
trabalhadores mais experientes. Ex-motorista de ônibus e trabalhador da
construção civil, Uechi nunca havia trabalhado em uma usina nuclear.
Ele recebeu cerca de US$ 150 por dia para desempenhar uma das
funções mais urgentes da planta: construir tanques para armazenar
enormes quantidades de água contaminada no local. Segundo Uechi, os dias
na usina eram bastante corridos e, em um dado momento, a prestadora de
serviços para qual ele trabalhava pediu para que ele continuasse
impermeabilizando as junções dos tanques, apesar da chuva e da neve que
faziam o impermeabilizante escorregar.
Ele acredita que esse
tipo de trabalho desleixado comprometerá os tanques no futuro. Desde
então, alguns desses tanques já vazaram.
"Eu falei várias vezes
sobre os problemas nos tanques, mas ninguém quis me ouvir", disse Uechi,
pai de quatro filhos, que diz que trocou Okinawa e sua economia em
recessão por Fukushima para proporcionar uma vida melhor para seus
filhos. Segundo ele, os trabalhadores da usina quase nunca viam os
gestores da Tepco durante o tempo que passaram trabalhando lá.
Uechi disse que transmitiu suas preocupações não apenas para seus chefes
imediatos, mas também para a Tepco. (Questionada sobre as denúncias, a
Tepco disse que não poderia falar sobre trabalhadores individuais devido
a questões relacionadas à privacidade.)
A Tepco prometeu
aumentar os salários dos funcionários para compensar a natureza
arriscada e instável do trabalho. Apesar da promessa, os trabalhadores
que jantavam em um dormitório próximo da usina se mostraram céticos,
especialmente em relação ao pagamento extra anunciado pela empresa.
"Após as várias prestadoras de serviços de todos os níveis tirarem sua
parte do bolo, não resta muito mais dinheiro para nós", disse um
trabalhador de 40 e poucos anos, enquanto ele e dois colegas faziam uma
refeição simples, composta por frango, berinjela e arroz e regada a
cerveja e uísque.
Todos os homens que trabalham no local – que
temem ser demitidos caso seus nomes sejam divulgados – foram alojados em
pequenos quartos equipados com uma cama e uma mesa. A área ao redor do
dormitório é quase que praticamente deserta, uma vez que muitas pessoas
se recusaram a retornar ao local após o acidente.
Os
trabalhadores dizem que há pouco para fazer à noite a não ser assistir
TV, jogar roleta em um pequeno centro de jogos e beber. Uma loja que
fica dentro de da "J-Village" – a base de Tepco fora da usina – vende
cerveja, uísque e saquê. De acordo com vários relatos, o alcoolismo é
galopante no local, e um trabalhador disse que ele e seus colegas às
vezes vão trabalhar de ressaca.
As empresas de recrutamento, que
enfrentam dificuldades para manter os três mil trabalhadores na usina –
em comparação aos 4.500 funcionários da usina de Kashiwazaki-Kariwa –,
estão ficando desesperadas. Geralmente afugentadas das áreas urbanas –
onde os trabalhadores diaristas e os moradores de rua se concentram –
pelos ativistas dos sindicatos, as empresas de recrutamento têm cada vez
mais divulgado seus anúncios de recrutamento online e deixado claro que
o nível das vagas é baixo.
Um anúncio, que divulgava uma vaga
envolvendo o monitoramento de radiação, informava: "você precisa ter bom
senso e ser capaz de manter uma conversa".
Embora não tenha
ficado claro se todos os trabalhadores contratados viviam nas ruas antes
de chegarem à usina, os funcionários e outras pessoas familiarizadas
com eles dizem que muitos estavam em situação muito precária antes de
serem contratados.
"Estamos falando de pessoas que, basicamente,
ganham apenas para comer e arcar com as necessidades mais básicas",
disse Hiroyuki Watanabe, membro da câmara municipal de Iwaki, cidade
vizinha de Fukushima.
Um trabalhador que se recusou a revelar
seu nome disse que estava numa situação tão precária que acabou ficando
sem-teto ao perder seu emprego como faxineiro cuja função era remover
lama contaminada das botas dos trabalhadores. Outro, contratado para
verificar se havia rachaduras nos reatores da usina, disse que chegou ao
local após perder seu emprego em uma fábrica e ser despejado de casa
depois de terminar o relacionamento com uma namorada.
A empresa de recrutamento que o contratou, chamada Takahashi Kensetsu, não pediu suas referências.
Ele diz que, na maior parte das vezes, não tinha certeza do que estava
verificando nos reatores e que recebeu poucas explicações sobre os
potenciais perigos associados ao trabalho. Após seu pagamento ter
atrasado e a empresa ter negado pagar horas extras, ele pediu demissão.
Desde então, ele conseguiu receber alguns salários atrasados com a ajuda
do escritório local que fiscaliza as normas trabalhistas.
Mas,
a essa altura, a Takahashi Kensetsu já havia encerrado suas atividades –
latas de cerveja vazias e gibis podiam ser vistos espalhados dentro de
seus escritórios vazios durante uma visita recente –, e, por isso, os
defensores dos direitos dos trabalhadores conseguiram recuperar o
dinheiro acionando a prestadora de serviços que contratou a empresa de
recrutamento. A Takahashi Kensetsu não pode ser encontrada em um
registro oficial de empresas locais e as várias ligações para o número
indicado no anúncio publicado pela companhia não obtiveram resposta.
Outras prestadoras de serviços de Fukushima e ativistas sindicais
dizem que a Takahashi Kensetsu é afiliada à Inagawa-kai, uma das maiores
organizações do crime organizado do Japão, ou yakuza. Trabalhadores,
prestadoras de serviços e advogados dizem que a yakuza está envolvida há
muito tempo no fornecimento de funcionários para as usinas nucleares – e
pelo menos uma prestadora de serviços penalizada devido a abusos
relacionados às leis trabalhistas em Fukushima foi identificada pela
polícia como tendo laços com a yakuza.
"A Tokyo Electric não
tem ideia de quem realmente está realizando o trabalho no local", disse
Takeshi Katsura, que ajudou o trabalhador receber seus salários
atrasados. "É uma espécie de vale tudo".
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