Dalia Youssef nunca sai de casa sem fones de ouvido. E não é só porque a
jovem cantora adora música, mas porque os utiliza como escudos
protetores contra uma das mais graves epidemias do Egito: o assédio
sexual.
"Antes, para mim, era difícil sair à rua. Me angustiava e deprimia
escutar a cada dia os comentários grosseiros que desconhecidos faziam
sobre mim. Com os fones, já não percebo", disse a jovem, num café do
Cairo.
Um estudo recente da ONU indica a magnitude do problema. No Egito, 99%
das mulheres adultas declaram já ter sofrido assédio sexual, e outras
50% o enfrentam diariamente. Assim, não é de estranhar que 82% das
egípcias não se sintam seguras nas ruas e que 43% afirmem que tentam não
sair de casa.
Duas documentaristas e fotógrafas estrangeiras moradoras do Cairo, a
belga Tinne Van Loon e a norte-americana de origem árabe Collette
Ghunim, tentaram reproduzir em imagens o que esses dados refletem.
Inspirado por um popular vídeo sobre assédio em Nova York, o vídeo
chamado "Creepers on the Bridge" [os asquerosos da ponte], gravado com
celular, mostra as reações dos homens que Ghunim encontrava ao cruzar a
ponte de Qasr al-Nil, no centro do Cairo. A maioria faz comentários vis
ou a olha lascivamente.
"Nosso vídeo é mais honesto que o do diretor Rob Bliss, em Nova York,
que condensa em dois minutos as experiências de uma atriz que caminhou
durante dez horas. No nosso caso, o trajeto durou menos de dez minutos",
diz Van Loon. A gravação virou um sucesso nas redes sociais.
Segundo Zeinab Sabet, membro da associação Shuftu Taharrush [sou
testemunha do assédio], a forma mais comum de abordagem são comentários
obscenos de desconhecidos e bolinações em zonas sensíveis. "Não se pode
baixar a guarda em momento algum. Se você está parada dentro do carro,
às vezes eles enfiam a mão pela janela."
Outra forma comum é o assédio telefônico. "Eles ligam ao acaso e, quando
uma mulher atende, voltam a ligar sem parar. É normal receber mais de
30 telefonemas em 60 minutos", diz Sabet.
Surpreendentemente, as situações de maior risco surgem em lugares muito
concorridos e em plena luz do dia, como manifestações, celebrações
públicas ou meios de transporte.
Em junho, uma virada inesperada na habitual inação das autoridades
ocorreu após uma jovem sofrer brutal agressão sexual por uma dezena de
homens na emblemática praça Tahrir, o epicentro da revolução de 2011.
O ataque ocorreu durante a celebração da vitória do general Abdel Fattah al-Sisi nas eleições presidenciais.
Imagens do assédio foram gravadas com um celular e, quando o vídeo
chegou às redes sociais, o presidente foi forçado a reagir, conferindo
prioridade à luta contra o assédio. Depois de alguns dias, ele assinou
um decreto que, pela primeira vez, definia o assédio sexual como delito.
O texto determina pena de seis meses a cinco anos de prisão, a depender
da gravidade do ataque, e estabelece multas entre € 320 (R$ 967) e €
5.500 (R$ 16,6 mil) --valor considerável, quando o salário mínimo do
país árabe é de apenas € 75 (R$ 227).
Os resultados, no entanto, são mínimos até agora. "Creio que haja um
pouco menos de assédio nas ruas. Mas não basta uma lei. É preciso atacar
as raízes profundas do problema", diz Van Loon, que viveu em outros
países do Oriente Médio e acredita que em nenhum deles a situação se
compare à do Cairo.
Entre os fatores que costumam ser apontados para explicar o fenômeno
estão a frustração sexual gerada por uma sociedade cada vez mais
conservadora e o desemprego elevado entre os jovens, que aumenta
substancialmente a média de idade para o casamento, sobretudo entre os
homens.
Sabet, no entanto, ressalta que o verdadeiro motivo é a "falta de
respeito e de consideração com a mulher e os seus direitos". "É
necessária uma mudança cultural desde a escola. O assédio conta com alto
grau de aceitação social e, por isso, de impunidade."
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