Folha de São Paulo
23 de março de 2015
Minha história - Samar Badawi, 34
A ativista que desafiou a poderosa monarquia árabe ao lutar por poder
dirigir e votar --algo vetado a mulheres-- agora busca libertar seu
marido e o irmão, blogueiro condenado a mil chibatadas
ROBSON RODRIGUESCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA
RESUMO A saudita Samar Badawi, 34, sofreu abusos do próprio pai,
foi obrigada a casar com um homem que não amava e ainda foi presa
acusada de tentar destruir a cultura árabe e sujar a imagem do país.
Hoje, ela luta para tirar da prisão o irmão, o blogueiro Raif Badawi,
31, condenado a dez anos e mil chibatadas, e o marido, o advogado e
ativista de direitos humanos Waleed Abulkhair, 36, sentenciado a 15
anos.
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Apesar de todos os estereótipos que o Ocidente criou acerca da cultura
árabe, a realidade é que horrores ainda acontecem em pleno século 21.
Comigo não foi diferente. Quando eu tinha 13 anos, minha mãe morreu e
passei a viver só com meu pai.
Foram 15 anos sendo estuprada por ele, e ainda fui obrigada a ficar seis
anos casada com um homem que não amava, escolhido pelo meu patriarca em
um matrimônio marcado pela truculência.
Quando já não aguentava mais, decidi fugir para um abrigo e denunciei a
violência que sofria. Acabei sendo presa por sete meses por
desobediência.
Nesse período de reclusão, conheci mulheres em situações piores que a minha.
Elas estavam detidas havia anos. Já haviam cumprido a pena, mas não
podiam ser libertadas porque não havia nenhum homem que se
responsabilizasse por elas, pois na Arábia Saudita é costume que o homem
tenha a guarda da mulher.
Parte desse terror só chegou ao fim quando meu pedido de divórcio foi aceito, uma condição muito difícil de conseguir.
Um tio se tornou meu novo guardião masculino. Em 2011, cometi um ato
considerado ultrajante, ofensivo e que poderia me levar à prisão: outras
mulheres e eu entramos em carros.
Sim, na Arábia Saudita, dirigir é um ato exclusivamente masculino.
No mesmo ano, eu denunciei o Ministério do Interior por proibir mulheres
de dirigir, ato judicial sem precedentes na história do meu país.
Estou lutando por coisas que, para as mulheres brasileiras, são mínimas.
A mulher na Arábia Saudita não pode ir ao mercado, ao médico, viajar,
decidir com quem se casar ou estudar sem a permissão de um homem, de um
tutor, seja ele o pai, o marido, ou até mesmo algum filho adulto.
Existem meninas proibidas de ir à escola e condenadas ao analfabetismo;
mulheres impedidas de trabalhar e de andar sozinhas, viúvas que, sem
poder ganhar o sustento, dependem de esmolas e de casamentos arranjados
para sobreviver.
Hoje sou uma das poucas mulheres da Arábia Saudita que sabem dirigir.
Faço parte de um pequeno grupo que se separou do primeiro marido e
conseguiu casar novamente, desta vez com o homem que eu escolhi, e
também a primeira mulher a garantir o direito ao voto no meu país.
PERSEGUIÇÃO
As leis do meu país exaltam a segregação de gêneros em espaços públicos e a repressão.
As regras são regidas pela doutrina do wahabismo, uma interpretação
ortodoxa e ultraconservadora do Islã, que tem forte influência no clã
Al-Saud, que governa o país.
A Arábia Saudita é país islâmico, e o Islã é uma religião de valores
adoráveis que prega o amor e a paz, mas o governo usa o wahabismo como
quer.
O Alcorão é a fonte da Constituição oficial e do direito civil, o que
torna o país uma monarquia absolutista teocrática, a única do mundo a
transformar um texto religioso em político e em um instrumento do
fanatismo dogmático.
Contrariar qualquer dessas regras pode significar punições severas.
Isso aconteceu com meu irmão, Raif Badawi, criador do blog Free Saudi Liberals.
Ele foi acusado de crime cibernético e condenado a passar dez anos na
prisão, pagar uma indenização de valor equivalente a US$ 266 mil (cerca
de R$ 850 mil) e receber mil chibatadas.
Essa é uma forma de punição cruel e desumana, proibida pela Lei Internacional de Direitos Humanos.
Estou muito preocupada com o futuro dele. O primeiro açoitamento público
aconteceu e ele recebeu 50 chibatadas. E continuará sendo açoitado até
completar o número total.
O governo adiou uma nova rodada porque o médico que o examinou disse que ele não aguentaria um novo açoitamento.
Meu marido, o advogado Waleed Abu Al-Khair, passa por uma situação
parecida. Antes de ser preso, ele trabalhava em defesa dos direitos
humanos, representando meu irmão e também outras vítimas de violações.
O governo o sentenciou a 15 anos de prisão por postar uma mensagem no
Twitter em que falava de seu trabalho e de como é difícil a vida na
Arábia Saudita.
A rigidez do governo chega a tal ponto que a Justiça nos acusa de sujar a imagem do país, como se fôssemos terroristas.
MAIS RIGIDEZ
Com a morte do antigo rei Abdullah bin abdul Aziz [em 23 de janeiro], o
meio irmão dele, Salman, assumiu o trono e promete ser ainda mais
rígido. Temo ser presa a qualquer momento.
Isso só não aconteceu ainda por pressão internacional e ajuda do diretor
da Organização Europeia para os Direitos Humanos na Arábia, Ali
Adubisi, mas estou proibida de sair do país por causa do discurso que
fiz no Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, na Suíça [em setembro
do ano passado, quando denunciou a falta de liberdade de expressão em
seu país].
Ao todo, 26 pessoas foram mortas pela polícia em protestos pacíficos, e o
número de detenções arbitrárias e julgamentos injustos contra ativistas
só aumenta.
O governo sentenciou nove manifestantes à morte pela lei antiterrorismo,
como Sheikh Nimr Baqir AlNimr, Ali Mohammed AlNimer, Daoud Hussein
AlMerhoo, entre outros.
Os dois últimos eram menores de idade quando foram presos e estão no corredor da morte apenas aguardando a execução.
O caminho para uma solução na Arábia Saudita ainda é longo, mas a
Primavera Árabe causou uma grande sensibilização na comunidade.
Não vou parar de exigir a libertação imediata de todos os presos
políticos, o fim de todas as formas de tortura, a reforma das leis que
restringem os direitos das mulheres sauditas e a abolição da tutela
masculina.
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