Quando os terroristas do Estado Islâmico cortam cabeças, queimam
prisioneiros vivos e destroem ruínas arqueológicas na Síria e no Iraque,
dizem agir em nome do islã --a fé de quase um quarto da população
mundial.
Mas, a despeito das manifestações de autoridades islâmicas insistindo
que a barbárie do EI não representa essa fé, uma pergunta antiga voltou
ao debate: o que há no islã que poderia ser pretexto para justificar as
atrocidades dessa milícia radical?
O EI cita trechos do Alcorão, livro sagrado do islã, para justificar
algumas de suas ações. Por exemplo, ao decapitar um inimigo, aponta a
passagem que pede a um muçulmano "golpear o pescoço" dos que "renegam a
fé".
Em outros casos, o EI busca justificar sua violência em tradições
medievais e, em parte, num uso seletivo de interpretações do que é o
islã.
Um trecho do Alcorão diz que "a bondade" é de quem "concede a riqueza
[...] aos escravos", mas o EI se beneficia da opinião de juristas
islâmicos para sujeitar minorias, como os yazidis, cujas mulheres se
tornam escravas sexuais dos militantes.
No Ocidente, o debate político em torno do EI tem sido feito na linha de
"eles não são muçulmanos" e "isso não é o islã", como visto em algumas
declarações do presidente dos EUA, Barack Obama. Especialistas sugerem,
porém, que essa linha de pensamento é improdutiva.
Para Jonathan Berkey, autor de "The Formation of Islam", de fato o EI
não representa o islã e a grande maioria dos muçulmanos desaprova essas
ações violentas. No entanto, afirma: "Os membros do EI fazem uma
interpretação do islã. É marginal, porém plausível, e isso lhes dá
força. Há base em tradições específicas."
Uma das questões problemáticas, diz, é que não há no islã uma autoridade
institucional que decida quais interpretações são válidas. Assim, não é
possível afirmar o que é "o islã". Tradições conflitantes coexistiram
por séculos entre juristas e sábios. Há inúmeros "islãs".
Em diversas de suas posições radicais, o EI se baseia nos estudos do
jurista medieval Ibn Taymiya (1263-1328), citado por um de seus líderes
intelectuais, Turki al-Binali.
"Se negamos a credibilidade do EI, não estamos lidando com a realidade.
Muitos muçulmanos acreditam que o islã é uma 'religião de paz', mas essa
é uma generalização que não vale para o islã, o cristianismo ou o
judaísmo", afirma Berkey.
Assim como outras religiões, o islã foi repensado em diversos momentos
por seus seguidores. No fim do século 19, foram famosas as propostas de
Jamal al-Din al-Afghani (1838-1897), que pedia uma modernização da
religião em relação à ciência.
Mas, como outros grupos radicais, o EI descarta os debates teológicos
ocorridos nos séculos recentes, rejeitando o que enxerga como
"inovações".
A linha comum a organizações como o EI e a Al Qaeda passa pelo militante
radical egípcio Said Qutb (1906-1966), que influenciou Osama bin Laden.
"Há muitas pessoas que dizem que o islã é uma religião da paz e outros
que afirmam que é o puro mal", diz à Folha Bernard Haykel,
professor da Universidade de Princeton (EUA) e uma das autoridades nos
estudos islâmicos. "Mas quem é que decide o que é o islã?"
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