Na noite antes de partir para a Síria, Khadiza Sultana dançou em seu
quarto. Era uma segunda-feira nas férias escolares. Sua sobrinha de 13
anos -apenas três anos mais jovem que Khadiza- tinha vindo para passar a
noite em sua casa. As duas meninas riam, girando ao som da música.
Khadiza ofereceu seu quarto à sobrinha e dividiu a cama com sua mãe. Era
uma filha amorosa, especialmente desde a morte de seu pai.
Salva no celular de sua sobrinha e vista dezenas de vezes desde então
por membros da família, a cena no quarto mostra a Khadiza que seus
familiares pensavam que conheciam: uma garota alegre, sociável,
divertida e gentil.
Porém, como ficaria claro, a cena foi também o adeus cuidadosamente
coreografado de uma adolescente que passou meses planejando como deixar
sua casa em Bethnal Green, na zona leste de Londres, com duas colegas de
classe, para seguir o caminho de outra amiga que tinha viajado para o
território controlado pela facção terrorista Estado Islâmico.
Na manhã de terça, Khadiza disse à sua mãe que passaria o dia na
biblioteca. Prometeu retornar às 16h30. Quando não tinha voltado às
17h30, sua mãe pediu à irmã mais velha de Khadiza, Halima Khanom, que
lhe mandasse uma mensagem. Não houve resposta.
Khanom, 32, foi até a biblioteca, mas a irmã não estava lá. Quando
voltou para casa, sua mãe já tinha descoberto que o guarda-roupa de
Khadiza estava vazio. Na manhã seguinte, a família informou à polícia do
desaparecimento. Três agentes do SO15, o esquadrão de contraterrorismo
da Polícia Metropolitana, bateram na porta. Um deles disse à mãe de
Khadiza: "Achamos que sua filha viajou à Turquia com duas amigas".
Khanom viu sua irmã depois disso na televisão: imagens granulosas de
câmeras de segurança mostravam Khadiza e suas duas amigas de 15 anos,
Shamima Begum e Amira Abase, passando calmamente pela segurança no
aeroporto de Gatwick para embarcar no voo 1966 da Turkish Airlines para
Istambul e, mais tarde, subindo num ônibus rumo à fronteira da Síria.
As imagens converteram as três meninas de Bethnal Green no rosto de um
novo fenômeno: jovens que se rendem à atração de algo que especialistas
como Sasha Havlicek, do Instituto de Diálogo Estratégico, descreve como
uma subcultura de "girl-power" jihadista. De acordo com o instituto,
cerca de 4.000 ocidentais já partiram para a Síria e o Iraque para
ingressar no EI, sendo mais de 550 meninas e mulheres jovens.
As mulheres ocidentais do EI apoiam os esforços do grupo para construir
um Estado, atuando como esposas, mães e divulgadoras on-line. Muitas são
solteiras, geralmente adolescentes ou com pouco mais de 20 anos. Para
as autoridades, elas representam uma ameaça tão grande ao Ocidente
quanto os homens: tendo probabilidade maior de perder o cônjuge em
combate, podem voltar para seus países de origem, doutrinadas e cheias
de ódio.
As meninas de Bethnal Green eram elogiadas por seus professores e
admiradas por seus colegas. Eram garotas inteligentes e populares que
viviam em um mundo onde a rebelião adolescente é expressa por uma
religiosidade radical que questiona tudo à sua volta.
"Antigamente as meninas queriam homens bonitos; hoje o que elas buscam
são muçulmanos praticantes", disse Zahra Qadir, 22, que faz trabalhos de
"desradicalização" para a Active Change Foundation (Fundação
Transformação Ativa), entidade sem fins lucrativos mantida por seu pai.
O EI se esforça para atrair essas meninas, adaptando seus chamados aos
sonhos, vulnerabilidades e frustrações delas. Enquanto as feministas
ocidentais enxergam o hijab como símbolo de opressão, essas meninas
acham que a moda ocidental sexualiza crianças. Nove dias antes de deixar
o Reino Unido com suas amigas, Amina escreveu no Twitter: "Sinto que
não pertenço a esta era".
Khanom tinha 17 anos, apenas um ano mais que Khadiza, quando se casou.
Tasnime Akunjee, advogado que representa as famílias das três garotas,
disse que, no mundo delas, ir à Síria e aderir ao EI é uma maneira de
tomar as rédeas de seu próprio destino.
As poucas notícias que emergiram sobre as três amigas desde que partiram
revelam um misto de ingenuidade e determinação juvenil. Uma conhecida
das garotas disse que Amira "se apaixonou pela ideia de se apaixonar".
Já Khadiza disse à sua irmã, depois de chegar à Síria: "Não vim para cá
apenas para me casar".
"É um feminismo distorcido", comentou Havlicek. "Para as meninas, aderir
ao EI é uma maneira de se emancipar de seus pais e da sociedade
ocidental, que elas consideram que as traiu. Para o EI, é ótimo para a
moral das tropas, porque os combatentes querem mulheres ocidentais. E,
na batalha das ideias, eles podem apontar para essas garotas e dizer:
'Veja, elas estão optando pelo califado'."
Em janeiro de 2014, uma das melhores amigas de Khadiza, Sharmeena Begum
(sem parentesco com Shamima), perdeu a mãe para um câncer. Pouco depois,
seu pai começou a namorar. Filha única, Sharmeena ficou profundamente
abalada. Após a morte da mãe, ela começou a passar mais tempo na
mesquita. Quando seu pai se casou novamente, Khadiza a acompanhou ao
casamento. Pouco depois disso, em 6 de dezembro, Sharmeena desapareceu.
"Ela estava vulnerável, traumatizada", comentou o advogado Akunjee, que
não representa a família de Sharmeena, mas conhece o caso dela.
"Sharmeena não reagiu fazendo um piercing ou começando a namorar um
traficante de drogas -ela aderiu ao EI."
Na época, um policial foi encarregado de entrar em contato com as
meninas, mas elas não atenderam seus telefonemas nem responderam às
mensagens dele. O policial pediu à escola para marcar encontros com as
meninas e quatro outras amigas delas. Duas reuniões chegaram a
acontecer. Apesar disso, segundo Khanom, nem a escola nem a polícia
informaram às famílias sobre exatamente o que estava acontecendo. Um
representante da Polícia Metropolitana disse que não houve qualquer
indício de que as garotas "estivessem vulneráveis de qualquer maneira ou
tivessem sido radicalizadas". Em 5 de fevereiro, policiais entregaram
cartas às meninas que elas deveriam entregar a seus pais, pedindo a
autorização para tomar depoimentos formais delas sobre o desaparecimento
de Sharmeena. Mas as meninas não entregaram as cartas.
Como a polícia e a escola estavam guardando silêncio sobre a suspeita de
que Sharmeena tivesse viajado à Síria, Khadiza e suas amigas começaram a
planejar seguir o exemplo dela. Numa página arrancada de um calendário,
as meninas redigiram uma lista de coisas que teriam que levar na
viagem: sutiãs, celular e agasalhos, entre outros itens. Encontrada no
fundo do guarda-roupa de uma delas, a lista parece conter também a letra
de uma quarta garota. Desde então, um juiz confiscou os passaportes da
quarta garota, de três outras alunas da Bethnal Green Academy e de uma
quinta garota do bairro.
Elas formavam o que Shiraz Maher, membro sênior do Centro Internacional
para o Estudo da Radicalização e da Violência Política, descreveu como
um núcleo padrão, razão pela qual é ainda mais espantoso que a escola e a
polícia tenham deixado o fato passar despercebido em mais de uma
ocasião. Segundo Maher, se um membro de um grupinho de amigos foi para a
Síria, esse é um indicativo confiável de que os outros amigos farão o
mesmo.
Em 15 de fevereiro, dois dias antes de as três meninas partirem, Shamima
mandou uma mensagem pelo Twitter a uma conhecida recrutadora do EI
residente em Glasgow, Aqsa Mahmood. Shamima é a mais jovem das três
amigas e também a mais esquiva. Sabe-se pouco sobre ela, tirando o fato
de que gostava de assistir ao programa "Keeping Up With the Kardashians"
e que viajou à Turquia com o passaporte de sua irmã de 17 anos, Aklima.
Aqsa Mahmood negou ter recrutado as meninas.
Familiares de Khadiza dizem que é pouco provável que as garotas tenham
conseguido sozinhas o valor estimado de 3.000 libras esterlinas (cerca
de R$ 16.300) para custear as passagens.
"É uma viagem complicada", falou Akunjee. Ele sabe disse em primeira
mão. Uma das primeiras coisas que o advogado fez depois de ser
contratado pelas famílias das garotas foi viajar com parentes delas à
Turquia e lançar um apelo público para que elas entrassem em contato.
Na manhã depois de as famílias retornarem a Londres, uma mensagem
apareceu na conta de Instagram de Khanom. Seu pedido de seguir sua irmã,
bloqueado desde que Khadiza tinha partido para a Síria, tinha sido
aceito. Khanom contou que mandou uma mensagem a Khadiza pedindo que ela
lhe dissesse se estava em segurança. Khadiza respondeu e mais tarde
mandou outra mensagem, pedindo notícias de sua mãe.
Baseadas nessas conversas, as autoridades concluíram que as três garotas
estavam em Raqqa, a capital "de facto" do EI, em um de vários albergues
para mulheres solteiras que existem ali.
Desde então, as três se casaram, confirmou o advogado das famílias. Elas puderam optar entre vários homens ocidentais.
Uma delas escolheu um canadense, outra um europeu. Amira se casou com
Abdullah Elmir, australiano que já foi visto em vídeos de recrutamento
do EI. Elas mantêm contato esporádico com suas famílias. As conversas
passam a impressão de que as meninas não lamentam sua decisão, mas
também dão a entender que elas enfrentam dificuldades como cortes de
eletricidade e escassez de produtos. Um bate-papo recente foi
interrompido abruptamente porque um ataque aéreo estava começando.
Está ficando mais difícil saber se são as próprias meninas que estão se
comunicando. Cada vez mais, suas conversas são entremeadas por frases
padronizadas de propaganda. "Será que elas adotaram essa linguagem? Será
que há alguém ao lado delas quando escrevem?", indaga Akunjee. "Não
sabemos. Mas elas não são mais as pessoas que suas famílias reconhecem.
Não são mais as mesmas. E como poderiam ser?"
Nenhum comentário:
Postar um comentário