sexta-feira, 18 de junho de 2010

LETÍCIA QUE MANDOU

Crônica de Kazuo Ohno, a última visita
O testemunho de Matthieu Doze
Kazuo Ohno
08/06/2010
Aos 103 anos, Kazuo Ohno, uma das maiores figuras do Butô, morreu, recentemente, em sua casa em Tóquio. Algumas semanas antes do falecimento, Matthieu Doze, dançarino e, atualmente, artista em residência na Vila Kujoyama em Quioto, foi visitá-lo. O que o permitiu proporcionar um testemunho emotivo e emocionante para a Mouvement.net.
Durante conversas, era comum surpreender-se pelo fato dele ainda estar vivo. Isto finalmente se encerrou. No dia 1 de junho de 2010, Kazuo Ohno foi enredado pela teia de aranha que capturou Louise Bourgeois. Ele nunca foi tão popular no Japão quanto foi (quanto é) na França. Desde o primeiro convite feito pelo Festival de Nancy, em 14 de agosto de 1980 e aonde foi apresentado o seu consagrado solo La Argentina (criado três anos antes), ele ficou no nosso imaginário como a principal referência de qualidade e de inquietação da dança contemporânea japonesa. Não faz nem um ano que o inestimável festival Vídeo-Dança que Michelle Bargues programa para o Centro Pompidou projetou as imagens desta estranha cerimônia de homenagem que este japonês rendeu para uma espanhola.
Como intérprete, eu digo que sou uma superfície de projeção, e foi, precisamente, por causa deste sentido de homenagem como fonte de inspiração que me motivou por muito tempo, que eu queria falar com ele sobre questões relacionadas ao desenvolvimento do trabalho e do processo de identificação de suas criações fantásticas e fantasmáticas.
Depois de se chegar a Kamihoshikawa, que fica a algumas estações de Yokohama, para ir ao estúdio de Ohno, tem que se escalar um caminho sinuoso. Quanto mais se avança, mais a encosta é íngreme. Para alguns, isto deve até ser visto como uma espécie de peregrinação. No estúdio, é Yoshito, seu filho, que, por três dias da semana, realiza oficinas de duas horas. E é sem que eu lhe peça qualquer coisa que seja, que ele sugere, logo no segundo dia de visita, conhecer seu pai. A casa deles é junto do estúdio.
Aos cento e três anos, as pernas de Kazuo já não o sustentam mais, sua capacidade pulmonar não é mais suficiente para nada, mas, mesmo assim, estão lá para perpetuar um movimento capaz de prolongar a ilusão de vida. Eu o vi deitado, como que em um estado de suspensão e rodeado pela benevolência de máquinas, tubos e duas mulheres que estão lá para alimentá-lo e higienizá-lo.
Às palavras que lhe são endereçadas, ele responde um pouco depois por um sussurro que parece dizer: “eu ouvi”, em seguida, percebe-se um esforço descomunal para entreabrir um olho, na tentativa de enxergar quem está ao redor dele. Não há mais nada a dizer, portanto, talvez feche seus olhos para tentar escutar novas ressonâncias na sombria tocata de Bach, e quem sabe, imaginá-lo saindo do recinto e avançando em direção ao palco, para, pacientemente, se vestir com várias camadas de roupas capazes de instaurar uma aparência etérea ― a da dançarina de flamenco, conhecida como a “rainha das castanholas”, que viu dançar em 1926 ― que ostenta flores que parecem ter nascido em seus cabelos, e com ambas, castanholas e flores, ao alcance de suas mãos extraordinárias.
Nas paredes do estúdio estão armários contendo todas as suas vestimentas cênicas e sua extraordinária coleção de chapéus. Tudo organizado em invólucros com seu nome ou suas iniciais. Ao fundo, quatro fotografias alinhadas em uma única tela e acima da qual está posicionado um retrato de La Argentina.
http://www.mouvement.net/critiques-f588c7bf1e548530-kazuo-ohno-la-derniere-visite

Nenhum comentário: