"Mithly" não é uma revista como as outras, mas não porque deve ser lida da direita para a esquerda. Lançada em abril, é a primeira revista gay a circular em árabe num país de maioria muçulmana, o Marrocos. O pioneirismo conseguiu uma divulgação inédita para a causa, mas vem causando polêmica nos jornais locais e o silêncio do governo do rei Mohammed 6º. No país, "atos licenciosos ou contra a natureza cometidos com indivíduos do mesmo sexo" podem ser punidos com prisão de seis meses a três anos, além de eventuais multas.
O site da revista (http://mithly.net/), em árabe, já atingiu, desde sua criação, mais de 1 milhão de visitantes únicos, segundo Samir Bergachi, redator-chefe da "Mithly". Mas o fenômeno mesmo é que os 200 exemplares impressos em Madri e distribuídos em Rabat, a capital marroquina, de mão em mão, gratuitamente, na mais rigorosa clandestinidade, viraram notícia na Europa e nos EUA. O impacto do papel e de ser escrito em árabe clássico deu destaque internacional à revista, que deixou de ser uma rede de militância na internet para se tornar um instrumento de ação política inédito no mundo islâmico.
Para batizar a revista, foi necessário também sustentar o uso de um termo novo. "Homossexual" não tem equivalente em árabe, a não ser os pejorativos "zamel" (efeminado) ou "chaddh" (perverso). "Mithly" -- em tradução literal, "igual a mim" -- ganhou o que os especialistas chamam de "nova carga semântica", quando um sufixo ("y") amplia o significado de uma palavra já existente ("mithl", igual).
A publicação é iniciativa da associação Kif Kif, legalizada em 2005 na Espanha. Mais do que uma rede de contatos entre compatriotas gays de Madri, Paris, Roma e Montréal, os fundadores, todos marroquinos expatriados, pretendiam interferir na vida do país que deixaram para trás. A sede da organização em Rabat tem três mil inscritos, segundo seus líderes. A identidade dos associados permanece escondida; a Kif Kif nem sequer é legalizada no país. "O governo não responde nossas cartas", diz Bergachi, estudante de jornalismo da Universidade Complutense de Madri. "O que temos é o silêncio."
Escritórios fora do Marrocos, com 50 a 60 militantes em média, captam pequenas doações que, sozinhas, mantêm o site, a consultoria legal e, mais recentemente, a revista "Mithly".
Num projeto gráfico simples e com apenas 20 páginas, a revista não faz provocações nem procura atrair leitores com consumismo, pornografia ou "nus artísticos". Engajado, o primeiro número traz um artigo sobre o Dia Internacioial da Mulher, testemunhos de homossexuais que "saíram do armário", repercute as manifestações públicas contra o show do cantor britânico Elton John no festival Mawazine, em Rabat, e traz um conto do escritor Abdellah Taïa.
O marroquino Taïa, 36, vive autoexilado em Paris há dez anos. Por escrever em francês, alcançou boa projeção no circuito literário internacional: publicou três romances por uma das grifes do livro francês, a editora Seuil. Participa de festivais literários internacionais, como o Beiruth 39 (com 39 autores de menos de 39 anos, selecionados pela Unesco), e o mais famoso de todos, o de Hay-on-Wye, no Reino Unido (que começou no dia 27). Os romances de Taïa são todos autobiográficos, ficção misturada às memórias de sua vida na pequena cidade de Salem. Até mesmo no Marrocos, onde a Unesco registra 50% de analfabetismo, os livros de Taïa vendem bem: segundo ele, "Le Rouge du Tarbouche" ["O vermelho do turbante"] vendeu 15 mil exemplares. Como ele diz, é "muito, muitíssimo". Dificilmente os escritores brasileiros com sua idade e projeção atingem esse resultado.
Taïa é um ícone gay no Marrocos desde que, em 2007, foi capa da revista semanal de informação "Tel Quel", editada em francês. Com tiragem de 20 mil exemplares -- apenas 100 vezes a da "Mithly" --, é a mais progressista do país e acaba de ganhar uma irmã em árabe. Além de expor-se numa entrevista, Taïa publicou o texto "A homossexualidade explicada à minha mãe".
E por quê? "Porque nós, homossexuais, estamos emprestando a voz a uma sociedade que está presa no silêncio de uma ditadura." A situação é parecida nos outros países da África do Norte. Na Argélia, "todos os culpados de atos homossexuais são punidos com dois meses a dois anos de prisão" (artigo 338 do Código Penal), além de multa. Na Tunísia, o artigo 230 do Código Penal prevê prisão de até três anos por "sodomia consentida entre adultos". Como em inúmeros outros exemplos ao redor do mundo, os gays marroquinos são os primeiros a reagir à repressão moral -- que eles também foram os primeiros a sofrer.
Embora escorada na tradição, a atual cultura repressiva nos países muçulmanos é um dado cultural relativamente novo, associado à recente islamização política. Abdellah Taïa cita o poeta árabe Abu Nuwas (756-814), que escrevia cânticos de amor aos rapazes. "É um clássico, e ainda é estudado nas escolas públicas", diz ele. "Todos sabem que era homossexual."
O mesmo acontece com Al-Jahiz (781-869), que escreveu um livro sobre "efebos e cortesãs", "um diálogo entre homens que amam mulheres e homens que amam homens". Nas "Mil e Uma Noites" (os manuscritos datam dos séculos 9º ao 18), não faltam histórias que narram, metaforicamente, relações de amor sensual entre pessoas do mesmo sexo. Não se trata de querer ver uma linhagem gay na tradição literária árabe. Segundo Mamede Mustafa Jarouche, 47, que assina a mais recente tradução brasileira do "Livro das Mil e Uma Noites" (Editora Globo) e dá aulas de árabe na USP, "nos tratados eróticos clássicos, e em boa parte da narrativa literária, não há exatamente uma visão essencialista sobre a escolha do parceiro". Jarouche, que morou no Cairo, conta que, em 2000, uma editora do governo egípcio teve a gráfica invadida por fundamentalistas que rasgaram livros de Abu Nuwas, que viveu, vale repetir, no século 8. E em 2001, na feira do livro do Cairo, houve uma tentativa de censurar a tradução árabe de "A sexualidade no Islã" (1975), do tunisiano Abdelwahab Bouhdiba, publicado no Brasil pela editora Globo.
Para a comunidade islâmica do Brasil, a tentativa de moralizar a literatura é uma volta aos "critérios claros" da religião. Um de seus líderes, o xeque Jihad Hassan Hammadeh, 44, diz que não há margem para dúvida na interpretação da lei corânica. "Homossexualidade é proibida, é pecado."
Nascido na Síria e vivendo em São Paulo desde 1991, o xeque não comenta os casos que ocorrem na comunidade islâmica que dirige. Mas não deixa de ser um tanto brasileira a solução que propõe: para ele, a religião dá ao crente a possibilidade de não divulgar seu pecado, para que haja espaço para voltar atrás. Assim, o acerto de contas acontecerá entre o fiel e Deus. "Se pecou, não divulgue."
Os marroquinos da "Mithly" estão divulgando, e além da repressão do Estado, recebem objeções intelectuais: publicar uma revista gay poderia ser um programa elitista e ocidental.
Paulo Hilu Pinto, 42, antropólogo da Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista na Síria contemporânea, enxerga o risco de "colonialismo militante" que pode haver na iniciativa. "O movimento gay organizado é libertador para quem?", questiona. "Um morador da periferia, que faz sexo com parceiros do mesmo sexo, pode nunca ter se enxergado assim." Hilu Pinto acredita que, com a moral religiosa, o gay pobre acaba se vendo como pecador. Os editores da "Mithly", de fato, pertencem a uma elite intelectual que mora e estuda na Europa. Os escassos 200 exemplares que circularam na capital marroquina não deixam de ser um sinal de elitismo, embora a íntegra da revista esteja disponível (e de graça) na internet. Mas não importa a tiragem: a mera existência da revista já é um respiro no abafado ambiente cultural do Marrocos.
O sociólogo marroquino Mohammed Mezziane, 47, afirma que a "Mithly" não propõe uma ruptura com o Estado ou com a religião. Pelo contrário, seu objetivo é integrar o discurso homossexual na vida do país. Cautelosos, os editores da revista ainda não reivindicam os temas da pauta ocidental, como o casamento gay ou as pensões e planos de saúde para parceiros do mesmo sexo.
O número 2 da "Mithly" saiu em 01/06, apenas na internet, com reportagem sobre o alto índice de suicídio entre os homossexuais. O terceiro número está prometido para julho que é o mês do orgulho gay, e também é o aniversário de cinco anos da associação Kif Kif. Os editores preparam uma reportagem sobre o lesbianismo no mundo árabe, história ainda mais escondida. Samir Bergachi, o redator-chefe, diz que quando os tradicionalistas querem mostrar os riscos da descriminalização da homossexualidade no Marrocos, exibem imagens do Carnaval carioca.
A associação Kif Kif, segundo Bergachi, foi convidada para participar do congresso internacional de direitos LGBT, em 2011, no Rio de Janeiro. "Finalmente vou conhecer o Rio", comemora.
O site da revista (http://mithly.net/), em árabe, já atingiu, desde sua criação, mais de 1 milhão de visitantes únicos, segundo Samir Bergachi, redator-chefe da "Mithly". Mas o fenômeno mesmo é que os 200 exemplares impressos em Madri e distribuídos em Rabat, a capital marroquina, de mão em mão, gratuitamente, na mais rigorosa clandestinidade, viraram notícia na Europa e nos EUA. O impacto do papel e de ser escrito em árabe clássico deu destaque internacional à revista, que deixou de ser uma rede de militância na internet para se tornar um instrumento de ação política inédito no mundo islâmico.
Para batizar a revista, foi necessário também sustentar o uso de um termo novo. "Homossexual" não tem equivalente em árabe, a não ser os pejorativos "zamel" (efeminado) ou "chaddh" (perverso). "Mithly" -- em tradução literal, "igual a mim" -- ganhou o que os especialistas chamam de "nova carga semântica", quando um sufixo ("y") amplia o significado de uma palavra já existente ("mithl", igual).
A publicação é iniciativa da associação Kif Kif, legalizada em 2005 na Espanha. Mais do que uma rede de contatos entre compatriotas gays de Madri, Paris, Roma e Montréal, os fundadores, todos marroquinos expatriados, pretendiam interferir na vida do país que deixaram para trás. A sede da organização em Rabat tem três mil inscritos, segundo seus líderes. A identidade dos associados permanece escondida; a Kif Kif nem sequer é legalizada no país. "O governo não responde nossas cartas", diz Bergachi, estudante de jornalismo da Universidade Complutense de Madri. "O que temos é o silêncio."
Escritórios fora do Marrocos, com 50 a 60 militantes em média, captam pequenas doações que, sozinhas, mantêm o site, a consultoria legal e, mais recentemente, a revista "Mithly".
Num projeto gráfico simples e com apenas 20 páginas, a revista não faz provocações nem procura atrair leitores com consumismo, pornografia ou "nus artísticos". Engajado, o primeiro número traz um artigo sobre o Dia Internacioial da Mulher, testemunhos de homossexuais que "saíram do armário", repercute as manifestações públicas contra o show do cantor britânico Elton John no festival Mawazine, em Rabat, e traz um conto do escritor Abdellah Taïa.
O marroquino Taïa, 36, vive autoexilado em Paris há dez anos. Por escrever em francês, alcançou boa projeção no circuito literário internacional: publicou três romances por uma das grifes do livro francês, a editora Seuil. Participa de festivais literários internacionais, como o Beiruth 39 (com 39 autores de menos de 39 anos, selecionados pela Unesco), e o mais famoso de todos, o de Hay-on-Wye, no Reino Unido (que começou no dia 27). Os romances de Taïa são todos autobiográficos, ficção misturada às memórias de sua vida na pequena cidade de Salem. Até mesmo no Marrocos, onde a Unesco registra 50% de analfabetismo, os livros de Taïa vendem bem: segundo ele, "Le Rouge du Tarbouche" ["O vermelho do turbante"] vendeu 15 mil exemplares. Como ele diz, é "muito, muitíssimo". Dificilmente os escritores brasileiros com sua idade e projeção atingem esse resultado.
Taïa é um ícone gay no Marrocos desde que, em 2007, foi capa da revista semanal de informação "Tel Quel", editada em francês. Com tiragem de 20 mil exemplares -- apenas 100 vezes a da "Mithly" --, é a mais progressista do país e acaba de ganhar uma irmã em árabe. Além de expor-se numa entrevista, Taïa publicou o texto "A homossexualidade explicada à minha mãe".
E por quê? "Porque nós, homossexuais, estamos emprestando a voz a uma sociedade que está presa no silêncio de uma ditadura." A situação é parecida nos outros países da África do Norte. Na Argélia, "todos os culpados de atos homossexuais são punidos com dois meses a dois anos de prisão" (artigo 338 do Código Penal), além de multa. Na Tunísia, o artigo 230 do Código Penal prevê prisão de até três anos por "sodomia consentida entre adultos". Como em inúmeros outros exemplos ao redor do mundo, os gays marroquinos são os primeiros a reagir à repressão moral -- que eles também foram os primeiros a sofrer.
Embora escorada na tradição, a atual cultura repressiva nos países muçulmanos é um dado cultural relativamente novo, associado à recente islamização política. Abdellah Taïa cita o poeta árabe Abu Nuwas (756-814), que escrevia cânticos de amor aos rapazes. "É um clássico, e ainda é estudado nas escolas públicas", diz ele. "Todos sabem que era homossexual."
O mesmo acontece com Al-Jahiz (781-869), que escreveu um livro sobre "efebos e cortesãs", "um diálogo entre homens que amam mulheres e homens que amam homens". Nas "Mil e Uma Noites" (os manuscritos datam dos séculos 9º ao 18), não faltam histórias que narram, metaforicamente, relações de amor sensual entre pessoas do mesmo sexo. Não se trata de querer ver uma linhagem gay na tradição literária árabe. Segundo Mamede Mustafa Jarouche, 47, que assina a mais recente tradução brasileira do "Livro das Mil e Uma Noites" (Editora Globo) e dá aulas de árabe na USP, "nos tratados eróticos clássicos, e em boa parte da narrativa literária, não há exatamente uma visão essencialista sobre a escolha do parceiro". Jarouche, que morou no Cairo, conta que, em 2000, uma editora do governo egípcio teve a gráfica invadida por fundamentalistas que rasgaram livros de Abu Nuwas, que viveu, vale repetir, no século 8. E em 2001, na feira do livro do Cairo, houve uma tentativa de censurar a tradução árabe de "A sexualidade no Islã" (1975), do tunisiano Abdelwahab Bouhdiba, publicado no Brasil pela editora Globo.
Para a comunidade islâmica do Brasil, a tentativa de moralizar a literatura é uma volta aos "critérios claros" da religião. Um de seus líderes, o xeque Jihad Hassan Hammadeh, 44, diz que não há margem para dúvida na interpretação da lei corânica. "Homossexualidade é proibida, é pecado."
Nascido na Síria e vivendo em São Paulo desde 1991, o xeque não comenta os casos que ocorrem na comunidade islâmica que dirige. Mas não deixa de ser um tanto brasileira a solução que propõe: para ele, a religião dá ao crente a possibilidade de não divulgar seu pecado, para que haja espaço para voltar atrás. Assim, o acerto de contas acontecerá entre o fiel e Deus. "Se pecou, não divulgue."
Os marroquinos da "Mithly" estão divulgando, e além da repressão do Estado, recebem objeções intelectuais: publicar uma revista gay poderia ser um programa elitista e ocidental.
Paulo Hilu Pinto, 42, antropólogo da Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista na Síria contemporânea, enxerga o risco de "colonialismo militante" que pode haver na iniciativa. "O movimento gay organizado é libertador para quem?", questiona. "Um morador da periferia, que faz sexo com parceiros do mesmo sexo, pode nunca ter se enxergado assim." Hilu Pinto acredita que, com a moral religiosa, o gay pobre acaba se vendo como pecador. Os editores da "Mithly", de fato, pertencem a uma elite intelectual que mora e estuda na Europa. Os escassos 200 exemplares que circularam na capital marroquina não deixam de ser um sinal de elitismo, embora a íntegra da revista esteja disponível (e de graça) na internet. Mas não importa a tiragem: a mera existência da revista já é um respiro no abafado ambiente cultural do Marrocos.
O sociólogo marroquino Mohammed Mezziane, 47, afirma que a "Mithly" não propõe uma ruptura com o Estado ou com a religião. Pelo contrário, seu objetivo é integrar o discurso homossexual na vida do país. Cautelosos, os editores da revista ainda não reivindicam os temas da pauta ocidental, como o casamento gay ou as pensões e planos de saúde para parceiros do mesmo sexo.
O número 2 da "Mithly" saiu em 01/06, apenas na internet, com reportagem sobre o alto índice de suicídio entre os homossexuais. O terceiro número está prometido para julho que é o mês do orgulho gay, e também é o aniversário de cinco anos da associação Kif Kif. Os editores preparam uma reportagem sobre o lesbianismo no mundo árabe, história ainda mais escondida. Samir Bergachi, o redator-chefe, diz que quando os tradicionalistas querem mostrar os riscos da descriminalização da homossexualidade no Marrocos, exibem imagens do Carnaval carioca.
A associação Kif Kif, segundo Bergachi, foi convidada para participar do congresso internacional de direitos LGBT, em 2011, no Rio de Janeiro. "Finalmente vou conhecer o Rio", comemora.
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