Certo dia, no final de março, Zhang Dazhong, um dos homens mais ricos da China, lutava para falar, entre as lágrimas, ao se dirigir aos convidados reunidos.
“Faz 40 anos que a minha mãe morreu, mas eu jamais organizei um memorial decente para ela”, lamentou Zhang. No estrado atrás dele, no salão de carpete vermelho de um hotel de luxo, viam-se flores e um grande retrato de uma mulher usando uma camisa branca, e com os cabelos amarrados em um rabo de cavalo.
“Até hoje, eu não sei onde ela foi enterrada”, disse ele, com a voz trêmula. “Como filho dela, isso perturba enormemente a minha consciência”.
Com a cerimônia extraordinária de 27 de março, Zhang, o fundador da rede de lojas de eletrodomésticos Dazhong Electronics, e a sua irmã mais nova, Zhang Kexin, fizeram algo que poucos parentes dos quase dois milhões de pessoas que foram mortas entre 1966 e 1976, durante a Revolução Cultural, ousaram fazer: homenagear publicamente uma vítima comum do terror maoista.
A mãe dele, Wang Peiying, uma viúva que tinha sete filhos, era funcionária do Ministério de Ferrovias. A onda de fome provocada pelo Grande Salto Adiante, que matou talvez 30 milhões de pessoas no início da década de sessenta, a deixou horrorizada, e, quando a agitação política teve início novamente alguns anos mais tarde, ela solicitou publicamente ao líder da China, Mao Tse-tung, que assumisse a responsabilidade pelos seus erros e renunciasse.
Wang foi internada em um hospital psiquiátrico e drogada. Libertada e obrigada a marchar diante da população na capital, ela recusou-se a recuar da sua posição. Ao contrário, ela repetiu as suas acusações. O maxilar de Wang foi quebrado para impedir que ela falasse. Após um julgamento em massa no Estádio dos Trabalhadores, em 27 de janeiro de 1970, ela foi executada.
“Ela era uma mulher de bom coração, que não recuava diante do mal”, afirmou Zhang, um homem de estatura mediana, de cabelos negros e uma face ligeiramente jovial, que usava um terno preto, camisa branca e gravata preta. “A sua postura corajosa, a sua fé inabalável, eram totalmente corretas. Ela simboliza a verdade e a justiça”.
As críticas a Mao fluíram livremente entre os palestrantes do evento. Mao Yushi, um economista chinês proeminente, disse que a violência e a subsequente ocultação e censura prosperavam na época. “A sociedade chinesa não é suficientemente normal”, disse ele.
Também foi exibido um novo e empolgante documentário feito por um cineasta independente, Hu Jie, chamado “A Minha Mãe Wang Peiying”.
Assim como o memorial de Zhang, o filme critica o esquecimento deliberado do governo em relação àquela era, afirma Zhou Zun, um historiador da Universidade de Hong Kong que está concluindo um livro sobre a onda de fome provocada pelo Grande Salto Adiante.
“No caso da história recente da China, nós não estamos falando sobre a verdade, já que a população jamais foi informada sobre a complexidade de todo aquele período. Não existe sequer espaço para discussão e debate”, denuncia Zhou.
Não muito longe do hotel em que Zhang, 62, realizou o seu memorial, Wang Jingyao, 89, mantém um altar em homenagem à sua mulher morta, Bian Zhongyun, no estúdio do seu apartamento modesto.
Ele também se recusa a esquecer.
Um dia após alunas de uma escola feminina de elite terem espancado Bian até a morte com tábuas cheias de pregos, em 5 de agosto de 1966, ele fez uma coisa profundamente audaciosa. Tomado pela tristeza, mas bastante lúcido, Wang pegou um ônibus, foi até o distrito comercial de Xidan e comprou uma câmera – da marca Xangai, modelo 202.
Ele retornou ao Hospital dos Correios, que fica de frente para a Escola de Segundo Grau da Universidade de Pequim, da qual Bian era vice-diretora, e começou a fotografar o corpo nu da mulher, que estava coberto de hematomas.
As fotografias são chocantes, bem compostas e é difícil olhar para elas. Wang trabalhou como fotógrafo e jornalista antes da revolução de 1949, para os norte-americanos e os comunistas chineses. “A história precisa ser registrada”, afirma ele.
Durante anos Wang tentou processar as pessoas envolvidas no assassinato da sua mulher, mas os tribunais rejeitaram sistematicamente as suas acusações. Atualmente, ele coleta provas – o relógio dela, esmagado durante o espancamento final, uma camisa manchada de sangue, e documentos. “Eles me evitam”, diz Wang, referindo-se aos ex-guardas vermelhos envolvidos. Hoje em dia alguns deles são ricos, ou ocupam cargos de influência.
Como tem sido viver durante 44 anos com esta verdade triste? “Duas palavras”, responde ele, com os olhos brilhando. “Amargor. Luta”.
Wang Youqin era aluna da Escola de Segundo Grau da Universidade de Pequim quando Bian foi morta. Inspirada pela leitura de uma cópia censurada do livro de Alexander Solzhenitsyn sobre a vida no gulag soviético, “Um Dia na Vida de Ivan Denisovich”, ela passou a coletar informações sobre vítimas na década de setenta, depois que a violência diminuiu. Youqin publicou um livro com uma lista de 659 nomes; o seu website “Memorial do Holocausto Chinês” traz mais 200 nomes.
O site está bloqueado na China. Wang, que leciona língua chinesa na Universidade de Chicago, está escrevendo um novo livro com mais nomes, baseado em centenas de entrevistas feitas na China.
Embora a Revolução Cultural em si não seja um tabu, mesmo hoje em dia as pesquisas e textos sobre aquele acontecimento são estritamente controlados. Um ou dois indivíduos abriram museus particulares sobre o período, como Peng Qian, na cidade de Shantou, no sul do país, da qual ele já foi vice-prefeito. O conteúdo é cuidadosamente calibrado. Wang afirma que o governo identificou apenas autoridades graduadas que foram assassinadas, bem como umas poucas “celebridades”, enquanto que os cidadãos comuns foram ignorados. Ela acha isso profundamente ofensivo. “O reconhecimento deveria incluir todas as vítimas”, diz ela.
O governo admitiu que Mao cometeu “erros”, mas a reputação dele na China ainda é oficialmente sagrada. Temendo as críticas ao homem cujo corpo está em exibição permanente na Praça da Paz Celestial, os editores de livros sobre a época são submetidos a um processo triplo de censura: na Administração Geral de Imprensa e Publicações, no Departamento de Pesquisa sobre a História do Partido e no Departamento de Pesquisa sobre a Literatura do Partido, segundo o historiador Ding Dong.
“Desde meados da década de noventa, pouca coisa foi publicada sobre a Revolução Cultural, e menos ainda textos que tivessem qualquer significância”, disse Ding recentemente a uma plateia reunida na Livraria Sanwei, em Pequim.
À medida que o tempo passa, os historiadores se preocupam cada vez mais com a preservação da verdade, já que as testemunhas estão morrendo antes que possam contar as suas histórias.
“Durante décadas, a verdade tem vivido na escuridão, mas agora ela está morrendo na escuridão”, alerta Zhou. “Sendo assim, alguém poderá perguntar: o que é verdade? O que é justiça? O que é história?”.
“Faz 40 anos que a minha mãe morreu, mas eu jamais organizei um memorial decente para ela”, lamentou Zhang. No estrado atrás dele, no salão de carpete vermelho de um hotel de luxo, viam-se flores e um grande retrato de uma mulher usando uma camisa branca, e com os cabelos amarrados em um rabo de cavalo.
“Até hoje, eu não sei onde ela foi enterrada”, disse ele, com a voz trêmula. “Como filho dela, isso perturba enormemente a minha consciência”.
Com a cerimônia extraordinária de 27 de março, Zhang, o fundador da rede de lojas de eletrodomésticos Dazhong Electronics, e a sua irmã mais nova, Zhang Kexin, fizeram algo que poucos parentes dos quase dois milhões de pessoas que foram mortas entre 1966 e 1976, durante a Revolução Cultural, ousaram fazer: homenagear publicamente uma vítima comum do terror maoista.
A mãe dele, Wang Peiying, uma viúva que tinha sete filhos, era funcionária do Ministério de Ferrovias. A onda de fome provocada pelo Grande Salto Adiante, que matou talvez 30 milhões de pessoas no início da década de sessenta, a deixou horrorizada, e, quando a agitação política teve início novamente alguns anos mais tarde, ela solicitou publicamente ao líder da China, Mao Tse-tung, que assumisse a responsabilidade pelos seus erros e renunciasse.
Wang foi internada em um hospital psiquiátrico e drogada. Libertada e obrigada a marchar diante da população na capital, ela recusou-se a recuar da sua posição. Ao contrário, ela repetiu as suas acusações. O maxilar de Wang foi quebrado para impedir que ela falasse. Após um julgamento em massa no Estádio dos Trabalhadores, em 27 de janeiro de 1970, ela foi executada.
“Ela era uma mulher de bom coração, que não recuava diante do mal”, afirmou Zhang, um homem de estatura mediana, de cabelos negros e uma face ligeiramente jovial, que usava um terno preto, camisa branca e gravata preta. “A sua postura corajosa, a sua fé inabalável, eram totalmente corretas. Ela simboliza a verdade e a justiça”.
As críticas a Mao fluíram livremente entre os palestrantes do evento. Mao Yushi, um economista chinês proeminente, disse que a violência e a subsequente ocultação e censura prosperavam na época. “A sociedade chinesa não é suficientemente normal”, disse ele.
Também foi exibido um novo e empolgante documentário feito por um cineasta independente, Hu Jie, chamado “A Minha Mãe Wang Peiying”.
Assim como o memorial de Zhang, o filme critica o esquecimento deliberado do governo em relação àquela era, afirma Zhou Zun, um historiador da Universidade de Hong Kong que está concluindo um livro sobre a onda de fome provocada pelo Grande Salto Adiante.
“No caso da história recente da China, nós não estamos falando sobre a verdade, já que a população jamais foi informada sobre a complexidade de todo aquele período. Não existe sequer espaço para discussão e debate”, denuncia Zhou.
Não muito longe do hotel em que Zhang, 62, realizou o seu memorial, Wang Jingyao, 89, mantém um altar em homenagem à sua mulher morta, Bian Zhongyun, no estúdio do seu apartamento modesto.
Ele também se recusa a esquecer.
Um dia após alunas de uma escola feminina de elite terem espancado Bian até a morte com tábuas cheias de pregos, em 5 de agosto de 1966, ele fez uma coisa profundamente audaciosa. Tomado pela tristeza, mas bastante lúcido, Wang pegou um ônibus, foi até o distrito comercial de Xidan e comprou uma câmera – da marca Xangai, modelo 202.
Ele retornou ao Hospital dos Correios, que fica de frente para a Escola de Segundo Grau da Universidade de Pequim, da qual Bian era vice-diretora, e começou a fotografar o corpo nu da mulher, que estava coberto de hematomas.
As fotografias são chocantes, bem compostas e é difícil olhar para elas. Wang trabalhou como fotógrafo e jornalista antes da revolução de 1949, para os norte-americanos e os comunistas chineses. “A história precisa ser registrada”, afirma ele.
Durante anos Wang tentou processar as pessoas envolvidas no assassinato da sua mulher, mas os tribunais rejeitaram sistematicamente as suas acusações. Atualmente, ele coleta provas – o relógio dela, esmagado durante o espancamento final, uma camisa manchada de sangue, e documentos. “Eles me evitam”, diz Wang, referindo-se aos ex-guardas vermelhos envolvidos. Hoje em dia alguns deles são ricos, ou ocupam cargos de influência.
Como tem sido viver durante 44 anos com esta verdade triste? “Duas palavras”, responde ele, com os olhos brilhando. “Amargor. Luta”.
Wang Youqin era aluna da Escola de Segundo Grau da Universidade de Pequim quando Bian foi morta. Inspirada pela leitura de uma cópia censurada do livro de Alexander Solzhenitsyn sobre a vida no gulag soviético, “Um Dia na Vida de Ivan Denisovich”, ela passou a coletar informações sobre vítimas na década de setenta, depois que a violência diminuiu. Youqin publicou um livro com uma lista de 659 nomes; o seu website “Memorial do Holocausto Chinês” traz mais 200 nomes.
O site está bloqueado na China. Wang, que leciona língua chinesa na Universidade de Chicago, está escrevendo um novo livro com mais nomes, baseado em centenas de entrevistas feitas na China.
Embora a Revolução Cultural em si não seja um tabu, mesmo hoje em dia as pesquisas e textos sobre aquele acontecimento são estritamente controlados. Um ou dois indivíduos abriram museus particulares sobre o período, como Peng Qian, na cidade de Shantou, no sul do país, da qual ele já foi vice-prefeito. O conteúdo é cuidadosamente calibrado. Wang afirma que o governo identificou apenas autoridades graduadas que foram assassinadas, bem como umas poucas “celebridades”, enquanto que os cidadãos comuns foram ignorados. Ela acha isso profundamente ofensivo. “O reconhecimento deveria incluir todas as vítimas”, diz ela.
O governo admitiu que Mao cometeu “erros”, mas a reputação dele na China ainda é oficialmente sagrada. Temendo as críticas ao homem cujo corpo está em exibição permanente na Praça da Paz Celestial, os editores de livros sobre a época são submetidos a um processo triplo de censura: na Administração Geral de Imprensa e Publicações, no Departamento de Pesquisa sobre a História do Partido e no Departamento de Pesquisa sobre a Literatura do Partido, segundo o historiador Ding Dong.
“Desde meados da década de noventa, pouca coisa foi publicada sobre a Revolução Cultural, e menos ainda textos que tivessem qualquer significância”, disse Ding recentemente a uma plateia reunida na Livraria Sanwei, em Pequim.
À medida que o tempo passa, os historiadores se preocupam cada vez mais com a preservação da verdade, já que as testemunhas estão morrendo antes que possam contar as suas histórias.
“Durante décadas, a verdade tem vivido na escuridão, mas agora ela está morrendo na escuridão”, alerta Zhou. “Sendo assim, alguém poderá perguntar: o que é verdade? O que é justiça? O que é história?”.
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