Antes de descrever como soldados uniformizados a atacaram com socos e chutes, e também outras jovens, ordenando que elas tirassem as roupas, deitassem de costas em frente a grupos de soldados e abrissem as pernas para que um homem de jaleco branco as examinasse para verificar se elas eram virgens – antes de narrar essa história, esta cabeleireira acende rapidamente um cigarro e dá uma profunda tragada.
Salwa Husseini Gouda é uma mulher pequena, com lábios graciosamente curvos e olhos amendoados. A jovem de 20 anos de idade parece estar cansada nesta tarde. Ela usa calças jeans, um lenço de cabeça e uma frente única justa. Ela fuma um cigarro atrás do outro. O ar está pesado com o calor úmido e a capital egípcia está poeirenta e barulhenta, como sempre.
“Eu não faço ideia do motivo pelo qual eles me prenderam, em meio a tanta gente, na Praça Tahrir”, diz Husseini Gouda. “Eles me chamaram de prostituta e me esbofetearam”. Ela diz que ficou chocada quando o grupo a arrastou, juntamente com cerca de 20 outras mulheres, para o Museu Egípcio, e as entregou às forças armadas. “Eu não podia acreditar que o exército fosse o responsável por esse ataque”, continua Husseini Gouda. “Depois eles nos levaram para uma prisão militar, e a partir de então, a situação só piorou”.
No dia em que Husseini Gouda foi presa, Hosni Mubarak, o presidente deposto do país, estava em um exílio auto imposto no resort à beira-mar de Sharm el-Sheik, durante quase quatro semanas. Um mês antes da detenção, as massas concentradas na Praça Tahrir haviam saudado as forças armadas, que assumiram o poder no país depois que Mubarak renunciou. “O povo e o exército são um só”, gritavam os manifestantes, dançando e comemorando em frente aos tanques. As mães pediam aos soldados que segurassem os seus filhos nos braços para tirar fotografias. O mundo inteiro observava o Egito com surpresa, vendo homens e mulheres, muçulmanos e cristãos, lutando lado a lado por liberdade. Então, 18 dias depois, a revolução teve resultado, com a queda do faraó. O povo foi vitorioso. Foi um triunfo que pertenceu também às mulheres – ou pelo menos era essa a impressão que se tinha na ocasião.
Quando Husseini Gouda chegou à prisão militar em 9 de março, ela diz que foi levada a uma pequena sala, juntamente com duas outras mulheres. Elas foram obrigadas a se despir e a permitir que as suas roupas fossem revistadas. Elas perceberam que havia um soldado do outro lado da janela aberta fotografando-as nuas. “Eu fiquei com medo de que eles pudessem usar as fotos para fazer com que nós fôssemos tidas como prostitutas”, conta Husseini Gouda.
Naquela noite, as mulheres foram trancafiadas em uma cela e receberam água e um pão que tinha cheiro de querosene. No dia seguinte, elas viram uma maca no corredor que dava para a cela. Um oficial anunciou que, na maca, um médico examinaria as mulheres solteiras para verificar se elas eram virgens. “Nós não pudemos acreditar no que ouvimos”, diz Husseini Gouda. “Nós pedimos que aquilo fosse pelo menos feito por uma médica, mas ele nos disse que não. Uma moça tentou resistir e foi torturada com choques”.
Várias organizações de direitos humanos estão investigando os fatos ocorridos na prisão militar de Heikstep, na zona nordeste do Cairo, entre os dias 9 e 13 de março. A Anistia Internacional pediu às autoridades egípcias que “cessem o tratamento chocante e degradante das manifestantes do sexo feminino”. O Parlamento Europeu declarou que “exames de virgindade forçados” se constituem em um tipo de tortura.
A psiquiatra Mona Hamed, do Centro El Nadeem para Reabilitação das Vítimas da Violência, documentou as declarações de várias das mulheres que foram detidas em 9 de março, incluindo Husseini Gouda. A conclusão de Hamed foi a seguinte: “A novidade é que quem esta por trás disso não é a polícia ou a polícia secreta, mas sim as forças armadas”. Ela diz que os exames de virgindade se constituem em uma mensagem de advertência à população, porque o exército deseja controlar a liberdade de movimentação dos cidadãos. Se uma mulher que participar de uma manifestação foi espancada ou presa, diz Hamed, a família dela talvez seja capaz de aceitar o fato – mas a família não aceitará a acusação de que a filha é prostituta. “Isso é uma humilhação impensável para a mulher e a sua família”, explica a psiquiatra.
Husseini Gouda não resistiu. O homem de jaleco branco se debruçou entre as suas pernas, e o procedimento não foi demorado. Ele permitiu que ela se cobrisse com um lençol, para proteger-se dos olhares dos soldados que se encontravam no corredor. “Foi horrivelmente humilhante”, afirma Husseini Gouda. Após o procedimento, todas as mulheres tiveram que assinar um formulário declarando se eram virgens ou não. Mas depois que o médico confirmou que o seu hímen estava intacto, os soldados lançaram novas acusações contra ela, diz Husseini Gouda. Dois dias depois, ela foi condenada por um tribunal militar a um ano de liberdade condicional pela suposta posse de uma arma, danos a propriedades e violação de toque de recolher.
“A situação das mulheres deteriorou-se continuamente nestas últimas décadas”, afirma Hala Mustafa, 52, cientista política e editora chefe da revista “Al-Dimuqratiya”. “Por um lado, isto se deve à islamização política provocada pela Irmandade Muçulmana e pelos salafistas. Por outro lado, o motivo é também o fato de o regime ter feito tudo o que podia para garantir que o povo se mantivesse conservador, de forma que ele não se rebelasse”.
Mustafa, com os seus cabelos castanhos claros, e usando uma pantsuit e joias, é uma das intelectuais progressistas e liberais do país. Ela acabou de cancelar uma viagem ao exterior porque não foi capaz de perder o que está se passando agora no Egito. Por um momento, um sorriso surge na sua face, o mesmo sorriso de muitas mulheres egípcias no dia de hoje, uma mistura de surpresa e orgulho. É muito cedo para fazer previsões, diz Mustafa, mas ela não está especialmente otimista: “O velho regime ainda está funcionando”.
Recentemente, a insubordinação das pessoas parece estar provocando alguma confusão para as forças armadas. Organizações de defesa dos direitos humanos afirmam que milhares de egípcios foram presos, torturados e submetidos a tribunais militares nas últimas semanas. As forças armadas restringiram os direitos a greves e a manifestações, e a lei de emergência e o toque de recolher de 2h às 5 ainda estão em vigor.
“Elas já não eram virgens quando chegaram à prisão”
A jornalista Rasha Azeb, 28, experimentou a revolução em primeira mão desde o princípio. Ela também foi detida em 9 de março e levada para o Museu Egípcio. “Nós continuamos protestando depois de 11 de fevereiro, porque queríamos nos livrar do regime inteiro, e não apenas de Mubarak”, explica Azeb. “Ela usa uma fita em volta do pescoço, na qual um cartucho de munição oscila de um lado para outro”. Agora todos podem dizer o que quiserem sobre Mubarak e os membros do governo dele que foram presos, diz Azeb. “Mas sobre o conselho militar ninguém pode falar nada”.
Azeb está sentada em um terraço no centro do Cairo, de onde se vislumbra lá embaixo um verdadeiro oceano de casas cor de areia que se estende até o horizonte. “Os soldados amarraram as minhas mãos e me bateram”, conta ela. “Eles disseram que a violência estava aumentando por causa dos jornalistas. Quatro horas depois, eles deixaram que eu e as minhas colegas fôssemos embora”. Azeb diz que viu outras mulheres serem espancadas e tomarem choques no museu. Foi só dias depois que ela descobriu o que aconteceu com aquelas mulheres. Isso é intolerável, diz a jornalista. No entanto, este não é o momento para se falar sobre discriminação sexual. “Este momento diz respeito aos direitos do povo egípcio”, acredita Azeb, “e não aos direitos distintos de homens e mulheres”.
Mesmo assim, as mulheres que lutaram pela liberdade na Praça Tahrir também impressionaram o mundo precisamente porque elas acabaram com um cliché. O Relatório do Fórum Econômico Global sobre Desigualdade entre os Sexos, que avalia a desigualdade entre os sexos em 134 países, colocou o país no 125º lugar na sua lista de 2010. Quarenta e dois porcento das mulheres egípcias são incapazes de ler ou escrever e a maioria não tem uma profissão. A mutilação genital feminina é proibida no país desde 1997, sendo ainda, porém, uma prática disseminada. As mulheres que saem na capital sem a companhia de um homem podem esperar serem alvos de assédio sexual.
Na terça-feira passada, quase três meses depois que Husseini Gouda e as outras mulheres foram detidas, um general do exército finalmente deu uma declaração sobre o assunto: “As jovens que foram detidas não eram como a sua filha ou a minha”, declarou o general ao canal de notícias norte-americano CNN. “Eram mulheres que estavam acampadas em barracas com manifestantes na Praça Tahrir, e nós descobrimos nessas barracas coquetéis Molotov e drogas”. Ele disse que os exames de virgindade foram realizados para que, mais tarde, as mulheres não pudessem alegar que foram assediadas ou estupradas na prisão: “Nós queríamos mostrar que elas já não eram virgens quando chegaram à prisão”.
A Anistia Internacional classificou a ação de “uma justificativa inteiramente perversa para uma forma degradante de abuso” e pediu às autoridades egípcias que punam os responsáveis. A resposta do exército foi dada imediatamente: “As alegações dessas mulheres são infundadas”, anunciou um porta-voz do exército.
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