domingo, 14 de agosto de 2011

Não faz muito tempo que era difícil encontrar grandes concentrações de arte de rua de qualidade no mundo árabe: o que se via eram as típicas proclamações universais de amor pintadas com spray e, na melhor das hipóteses, um raro estêncil e outras peças mais elaboradas.
Mas, nos seis meses que se seguiram à revolução egípcia que teve início em 25 de janeiro, o Cairo emergiu subitamente como a capital da arte de rua da região, e o seu universo do grafite – que teve início basicamente com slogans mal rabiscados pedindo a derrubada do regime de Mubarak – evoluiu, e passou a se caracterizar por temas bem elaborados e provocadores sob ponto de vista estético e político.
Todos os dias, quando a luz difusa do sol é filtrada pela camada de névoa seca que envolve o Cairo, novas peças feitas na noite anterior podem ser vistas pela primeira vez.
Há estênceis do revolucionário sul-americano Che Guevara exibindo uma barba de estilo muçulmano, e de um tanque de frente para um homem em uma bicicleta que traz um cesto de pães sobre a cabeça. As palavras “Você é bonito” estão escritas em um muro em uma rua adjacente à Praça Tahrir, a pouca distância do local onde foram travadas algumas das mais sangrentas batalhas de rua de fevereiro. Em outros locais os grafiteiros escreveram frase: “Respeite a Existência ou Espere Resistência”.
Artistas de ruas e os seus fãs criaram websites para identificar e acompanhar esses trabalhos, mas a propagação destes é tão vasta e rápida que tal tarefa tem sido difícil.
“Após a queda do antigo regime nós passamos a fazer muito mais porque não havia polícia”, diz um artista de rua de pouco mais de 20 anos de idade, cujo apelido é El Teneen. O primeiro trabalho de grafite feito por ele foi uma imagem do presidente Hosni Mubarak tendo abaixo de si a palavra “Fora!”, que ele pintou durante os primeiros dias da revolução.
Com a redução do contingente policial na maioria dos bairros – e um clima de maior tolerância por parte dos moradores em relação à arte pública –, o grafite passou a florescer no Cairo.
“Depois que a revolução eclodiu, eu creio que aumentou a vontade de ver as pessoas fazendo arte nas ruas”, diz um profissional de design gráfico de 29 anos de idade que de vez em quando faz trabalhos de rua sob o pseudônimo Ganzeer.
Em uma noite da semana passada, a altas horas, Keizer – o pseudônimo de um artista de rua de 33 anos de idade – estacionou o carro ao lado de dois policiais no bairro afluente de Zamalek, em uma ilha do Rio Nilo. Ele perguntou aos policiais se poderia fazer sob uma ponte um estêncil de uma menina em um balanço . Inicialmente, os policiais não viram nenhum problema quanto ao pedido de Keizer, mas eles lhe disseram que provavelmente teriam que consultar primeiro o oficial que os comandava. Keizer achou melhor procurar outro lugar.
Esse tipo de interação – um artista pedindo permissão a policias para pichar propriedade pública – é impensável em muitos países. Mas, agora que existe uma mentalidade mais liberal entre certos segmentos da população, essa ideia não soou inteiramente absurda para esses policiais em particular.
Embora algumas peças – como a garota no balanço que Keizer desejava desenhar – não tenham nenhuma conotação política, muitos trabalhos da nova arte de rua do Cairo exprimem as frustrações de um Egito pós-revolucionário no qual muita gente enxerga ainda no governo de transição administrado pelos militares as sombras do antigo regime e da forma como este agia.
Em maio, Ganzeer criou aquilo que ele chama de máscara da liberdade – adesivos mostrando uma cabeça usando uma máscara de sadomasoquismo, com a boca amordaçada e os olhos cobertos. O texto em árabe é uma saudação do conselho militar que governa o Egito à população e anuncia que a nova máscara da liberdade acaba de ser lançada.
Quando os moradores do bairro do centro da cidade onde ele estava colocando os adesivos ficaram agitados com a mensagem, a polícia foi chamada e Ganzeer passou o resto do dia na cadeia, sendo libertado a seguir. Muitos ativistas egípcios continuam a usar a imagem dessa “máscara da liberdade” como avatar dos seus perfis em redes social como o Facebook e o Twitter.
Ganzeer também colaborou com outros artistas para criar em uma ponte em Zamalek a imagem de grande dimensão do tanque de guerra que ameaça o vendedor de pães. Descrevendo a sua inspiração para esses trabalhos, Ganzeer disse: “Foi a frustração com o fato de os militares terem assumido o papel de figura de autoridade e os poderes de governo – e basicamente por eles terem feito tudo aquilo contra o qual nós temos protestado”.
As tensões entre o conselho militar e os seus críticos aumentaram nas últimas semanas. No dia 8 de julho, manifestantes voltaram a ocupar a Praça Tahrir – o centro dos protestos durante a revolução do Egito no início deste ano –, exigindo reformas adicionais naquilo que eles chamaram de “a segunda revolução” do Egito. No sábado passado, alguns manifestantes da Praça Tahrir fizeram uma passeata até o Ministério da Defesa, onde entraram em choque com moradores locais e apoiadores do conselho militar, em um dos episódios mais violentos desde a revolução.
Ganzeer afirma: “A Praça Tahrir é importante – acampar e fazer manifestações lá é importante –, mas eu creio que é essencial que nós utilizemos uma forma alternativa de protesto, diferente daquela que foi capaz de derrubar Mubarak”. Ele diz que o seu trabalho é parte desse conjunto de formas alternativas de protesto. “Eu espero que essas novas formas de protesto sejam adotadas pelas pessoas e que elas pensem sobre os fatos de uma forma diferente, e não como os manifestantes do início do ano”.
Muitos dos trabalhos de estêncil que Keizer gaz todas as noites – usando uma bermuda e, apesar do calor de verão, um casaco de moletom com capuz para ocultar a sua identidade – não veiculam uma mensagem clara e nem sempre são facilmente interpretados ou entendidos pelos pedestres. Em um dos seus estênceis, que mostra uma mulher segurando uma granada de mão, a arma é com frequência confundida com uma pera ou uma outra fruta, diz o artista.
Em certas ocasiões, as ruas do Cairo são quase que totalmente vazias, e quando os pedestres passam por Keizer no meio da noite, enquanto o artista trabalha, eles às vezes perguntam por que ele simplesmente não escreve a mensagem que deseja transmitir.“Eu respondo a eles que cabe ao indivíduo pensar e chegar a uma conclusão própria”, diz ele. “E muita gente aqui não está acostumada a chegar a raciocinar e inferir por si próprio – eles estão acostumados a que lhes digam o que pensar”.

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