Nessa aldeia do norte da Índia, trabalhadores desmancham pilhas de arroz queimado e mofado, enquanto moscas rondam o trigo estragado perto dali. Moradores disseram que uma safra de arroz passou anos à beira de uma estrada e agora seria enviada a uma destilaria para virar bebida.
Apenas 290 km ao sul, numa favela da periferia de Nova Déli, Leela Devi sofre para alimentar sua família de quatro pessoas com magras porções de pão chapati e batatas, que ela disse ser tudo o que conseguiu comprar com sua pensão por invalidez e com o rendimento do marido, trabalhador braçal diarista. A família dela está entre os estimados 250 milhões de indianos com alimentação insuficiente.
Tal é o paradoxo do sistema alimentar indiano. Graças a inovações agrícolas e generosos subsídios, a Índia tem hoje o segundo maior estoque de grãos do mundo, atrás apenas da China, e exporta parte da sua produção. Mas um quinto dos seus habitantes está desnutrido -o dobro do índice de outros países em desenvolvimento, como Vietnã e China-, por causa da corrupção, da má gestão e do desperdício em programas que deveriam distribuir alimentos aos pobres.
"A razão para enfrentarmos esse problema é a nossa recusa em distribuir os grãos que compramos dos agricultores às pessoas que precisam", disse Biraj Patnaik, assessor da Suprema Corte indiana para questões alimentares. "O único lugar onde esses grãos merecem estar é na barriga das pessoas que passam fome."
Após anos negligenciando o problema, o populista governo nacional cogita fazer uma lei para despejar bilhões de dólares adicionais a um sistema de distribuição de comida que já existe no país, duplicando o número de pessoas atendidas. Ela também permitiria que os pobres comprem mais arroz e trigo a preços reduzidos.
Os autores do projeto dizem que, se ele for bem redigido e executado, ninguém mais passará fome no país. Mas críticos afirmam que, sem amplas reformas na estrutura governamental, o dinheiro adicional só irá engordar o deficit público e os bolsos de funcionários que desviam alimentos de vários níveis da cadeia de distribuição.
A política alimentar indiana tem duas metas centrais: oferecer aos produtores preços maiores e mais consistentes do que os do mercado, e vender grãos aos pobres a preços inferiores aos do varejo privado.
O governo federal adquire grãos e os armazena. Cada Estado se serve desses estoques com base na quantidade de pobres na sua população. Os Estados entregam os grãos a lojas subsidiadas e decidem quais famílias recebem os cartões de racionamento que permitem a compra de trigo e arroz a preços mais baixos.
Esse sistema custa cerca de 750 bilhões de rupias (US$ 13,6 bilhões) por ano ao governo, ou quase 1% do PIB. Mas 21% dos 1,2 bilhão de habitantes do país permanecem desnutridos, proporção que se manteve quase inalterada nas últimas duas décadas, apesar do aumento de quase 50% da produção de alimentos, segundo o Instituto Internacional de Pesquisas para Políticas Alimentares, com sede em Washington.
A nova lei de segurança alimentar poderia mais do que duplicar o dispêndio governamental, que chegaria a 2 trilhões de rupias por ano, segundo estimativas.
No entanto, apenas 41,4% dos grãos recolhidos pelos Estados nos armazéns federais chegam aos lares indianos, segundo um recente estudo do Banco Mundial. Críticos dizem que funcionários ao longo de toda a cadeia, dos gerentes dos armazéns aos varejistas, desviam alimentos e os vendem a atravessadores, embolsando lucros ilícitos.
Os indianos pobres que possuem cartões de racionamento costumam se queixar da qualidade e da quantidade dos grãos disponíveis nas lojas governamentais, chamadas de "lojas de preço justo".
Outras famílias nem dispõem dos cartões, por causa dos procedimentos -e, muitas vezes, dos subornos- exigidos. A falta de um comprovante de renda ou residência é razão para não obter o cartão.
Críticos dizem que mais pessoas teriam direito à ajuda se o limite de renda fosse elevado. Em Nova Déli, ele é de 2.000 rupias (US$ 36) por mês, independentemente do número de dependentes, quantia que muitas famílias pobres gastam só em aluguel.
Devi, que vive na favela Jagdamba Camp, na zona sul de Déli, disse que teve um cartão de racionamento negado há quatro anos. Ela contou que a renda mais constante da sua família é uma pensão por invalidez de mil rupias por mês, que ela recebe por causa de queimaduras sofridas num acidente anos atrás. Contando a renda irregular do seu marido, a família geralmente precisa se virar com até 2.000 rupias mensais.
"Às vezes, temos de sentar e esperar", disse ela. "Minha sogra recebe alimentos subsidiados e me dá uma parte quando pode."
Alguns Estados, como Tâmil Nadu e Chhattisgarh, têm feito grandes melhorias usando a tecnologia para rastrear os alimentos e facilitaram a obtenção dos cartões de racionamento por praticamente todas as famílias. Outros Estados, como Bihar, testam cupons de alimentação.
Reformistas argumentam que a Índia deveria passar a distribuir dinheiro ou cupons alimentares aos pobres, como fazem os EUA, o México e outros países. Isso reduziria a corrupção e a má gestão, porque o governo iria comprar e armazenar apenas os grãos suficientes para fazer frente a safras ruins. E os pobres teriam mais alternativas, disse Ashok Gulati, presidente da Comissão de Custos e Preços Agrícolas do governo. "Por que apenas trigo e arroz? Se ele quiser ovos, ou frutas, ou alguns legumes, deveria ter essa opção", disse Gulati.
"É preciso aumentar a renda da pessoa. Aí a distribuição ficaria com o setor privado."
Mas a maioria dos funcionários teme que, se a Índia adotar os cupons, os homens irão trocá-los por bebida ou tabaco, privando suas famílias de alimentação suficiente.
Autoridades dizem que o Parlamento deve votar a nova política alimentar até o final do ano. Enquanto isso, o arroz deve continuar largado à beira da estrada aqui no Punjab.
"É doloroso de assistir", disse Gurdeep Singh, um agricultor próximo a Ranwan. "O governo é grande e poderoso. Ele deveria ser capaz de montar um galpão para guardar essa safra.
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