Na Alemanha, a maioria dos homens não são circuncidados. Mas num país diverso que abriga várias comunidades religiosas, a questão de se os pais devem continuar decidindo se seus filhos passarão pelo procedimento pode ser um tópico polêmico. E é um assunto que provavelmente não desaparecerá em breve, apesar de um tribunal alemão ter decidido esta semana que a circuncisão representa um “dano físico” contra a criança.
O tribunal regional de Colônia determinou na terça-feira (26) que os médicos do país que circuncidarem um menino por motivos religiosos podem ser acusados de cometer dano físico, mesmo em casos em que os pais dão seu consentimento expresso.
O que está em questão é o que tem precedência: a liberdade religiosa dos pais ou o direito da criança à integridade física. Os juízes de Colônia decidiram agora que o direito dos pais de criarem seus filhos de acordo com a religião não tem precedência sobre o direito da criança à autodeterminação. Além disso, eles também chegaram à conclusão de que a circuncisão é contrária ao bem-estar da criança. Embora a decisão não esteja atrelada legalmente a outros tribunais, muitos esperam que ela influencie outras decisões futuras.
Na Alemanha, os procedimentos de circuncisão são realizados regularmente por médicos, mesmo que a justificativa seja religiosa em vez de médica. Em algumas clínicas, acontecem até mesmo circuncisões em massa. Até agora, os médicos vêm trabalhando numa área legalmente obscura, em que faltam regulamentações legais claras sobre o assunto. Os médicos há muito usam essa brecha legal para justificar a legalidade de suas ações de acordo com a lei alemã atual. Depois da decisão de terça-feira, entretanto, muitos temem que não poderão mais fazer isso.
O caso de Colônia envolveu um menino de quatro anos que foi levado a uma clínica na mesma cidade em 4 de novembro de 2010, onde foi circuncidado de acordo com a vontade de seus pais muçulmanos. Dois dias mais tarde, os pais levaram o filho para o pronto-socorro do hospital universitário de Colônia porque ele estava com um sangramento abundante. O promotor público então processou o médico.
Na primeira decisão do caso, o baixo tribunal distrital de Colônia determinou que o tratamento médico havia sido impecável e os juízes absolveram o médico. O tribunal decidiu que a cirurgia havia de fato representado dano físico, mas que ela havia sido justificada pelo “bem-estar da criança” e observou que os pais haviam dado sua aprovação ao procedimento. O tribunal afirmou que a circuncisão serve como uma “ação ritual tradicional para documentar que alguém pertence cultural e religiosamente à comunidade muçulmana”. A circuncisão, argumentou o tribunal, evitaria que a criança fosse ameaçada de estigmatização entre seus iguais. O tribunal também salientou sua opinião de que há vantagens médicas para a circuncisão. O promotor público respondeu com uma apelação, levando o caso para o tribunal regional.
O tribunal regional por fim rejeitou a apelação, decidindo que o médico era inocente por causa da incerteza legal em torno da circuncisão.
Os juízes, entretanto, decidiram estabelecer alguma clareza para o futuro em relação a esta questão, decidindo que a cirurgia, ou dano físico, não era justificada pela permissão dada pelos pais e que ela não representava o bem-estar da criança. O tribunal decidiu que o direito da criança à integridade física é mais importante que os direitos básicos dos pais. O tribunal declarou que o direito de uma mãe ou de um pai à liberdade religiosa, bem como seu direito a determinar como criarão seus filhos, não seria restringido se eles fossem obrigados a esperar e permitir que a criança decida por si mesma se quer ser circuncidada. A decisão estabelece que o direito da criança à auto-determinação deve vir primeiro.
Uma discussão controversa vem ganhando corpo na Alemanha há anos sobre como lidar com as circuncisões baseadas na religião. No passado, grupos muçulmanos na Alemanha acusaram os críticos da circuncisão por discriminação e paternalismo.
E, na terça-feira, o influente Conselho Central de Judeus do país criticou duramente a decisão como uma “intrusão dramática e sem precedentes sobre o direito de auto-determinação das comunidades religiosas”. Um dia depois, o Concelho Central de Muçulmanos na Alemanha (ZMD) juntou-se ao coro de críticos. “A liberdade religiosa é muito importante em nossa constituição e não pode ser tornar um joguete numa decisão unidimensional que também fortalece ainda mais os preconceitos e clichês existentes em relação a este assunto”, disse o presidente do ZMD Aiman Mayzek.
Ali Demir, presidente da Comunidade Religiosa Islâmica, alertou sobre a criminalização dos pais e médicos. “Este é um procedimento inofensivo, uma tradição que tem milhares de anos de existência e é altamente simbólica”. Ele diz que a decisão é discriminatória e que atrapalhará a integração dos muçulmanos na Alemanha.
Um debate aquecido vem acontecendo nos últimos anos tanto por parte de especialistas legais quanto da comunidade médica em relação à circuncisão. Os médicos até aconselharam seus colegas a assinar contratos com famílias antes de realizar o procedimento para garantir que não sejam processados mais tarde.
Continua incontestável que a circuncisão leva a uma higiene melhor e também pode ajudar a prevenir algumas formas de câncer. Ainda assim, especialistas médicos que foram consultados na apelação disseram ao tribunal que não havia “necessidade de realizar circuncisões na Europa Central como medida de saúde preventiva”. Até do ponto de vista médico, a circuncisão é em grande parte uma questão de crença.
Embora seja comum nos Estados Unidos (onde quase 55% dos meninos são circuncidados), no mundo muçulmano, Israel e outros lugares, a prática é bem menos prevalente na Europa. Na Alemanha, a Pesquisa Alemã de Entrevista e Exame de Saúde para Crianças e Adolescentes (KIGGS) descobriu em seu último estudo de 2007 que 10,9% dos meninos entre 0 e 17 anos haviam passado por circuncisão. No mundo todo, a Organização Mundial de Saúde estima que um terço dos homens sejam circuncidados.
A Alemanha abriga até 4 milhões de muçulmanos e pelo menos 105 mil judeus, e a tradição da circuncisão é comum em ambas as religiões. É improvável que os pais simplesmente abandonem as iniciativas para circuncidar seus filhos por conta da decisão do tribunal.
Em outros momentos do passado, também foram realizados procedimentos legais contra indivíduos que realizaram circuncisões na Alemanha sem serem profissionais médicos. Em 2006, um aposentado turco foi processado e multado em Düsseldorf por realizar circuncisões em meninos. O homem baseou sua defesa no fato de ser respeitado pelas circuncisões que havia feito em seu país de origem. Na Turquia, as circuncisões não precisam ser realizadas por médicos.
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