domingo, 1 de julho de 2012

O policial falava com calma e segurança enquanto insistia que não podia ter estuprado a filha adolescente de um pastor local, porque um mulá os casou pouco antes da relação sexual. "Assim que o contrato de casamento é firmado, qualquer relação sexual não é considerada estupro", disse Khodaidad, 42, que até ser detido no caso trabalhava para a Polícia Local Afegã treinada pelos Estados Unidos. O irmão dele, Ghulam Sakhi, acusado pela mulher jovem de ter participado de sua abdução, estava sentado ao lado de Khodaidad no chão de uma pequena sala de recepção tradicional, na cadeia provincial daqui. Ele comentou: "Na cultura pashtun, as garotas não têm direito de dizer com quem querem ou não querem se casar. Elas devem se casar com quem seus pais escolherem para elas". Nenhum homem foi formalmente acusado e ambos negam as acusações de abdução e estupro. Promotores, parentes e defensores de direitos humanos discordam veementemente da versão dos suspeitos sobre o que aconteceu a Lal Bibi, a mulher jovem: eles dizem que há pouca dúvida de que ela foi abduzida e estuprada e que não houve casamento. Eles também contestam a ideia de que um casamento nessas circunstâncias poderia ser legítimo ou eximir o estupro. O casamento forçado é ilegal segundo a lei afegã, disse o general Mohammed Sharif Safi, o promotor militar em Kunduz. Mas para muitas pessoas aqui, incluindo o chefe de polícia de Kunduz e o porta-voz do Ministério do Interior –que insistiram que o caso envolve casamento forçado, não estupro– o primeiro parece menos censurável, apesar de outros considerarem tênue a linha divisória entre os dois. Entrevistas com mais de uma dúzia de pessoas ligadas ao caso sugerem que muito mais está em jogo do que o destino da filha de 18 anos do pastor de ovelhas. O caso dela ilustra a persistência do costume tribal, a fragilidade das novas proteções legais às mulheres e o poder dos homens armados. O que constitui estupro é apenas uma das questões contenciosas neste caso, que veio à tona há cerca de um mês, quando Lal Bibi e sua família tomaram a rara decisão de vir a público com suas acusações. O caso mexeu com o presidente Hamid Karzai, que ordenou que os culpados fossem levados à Justiça e que a unidade da polícia envolvida fosse desarmada. Mas alguns membros do Conselho de Segurança Nacional do Afeganistão argumentaram que um processo neste caso poderia manchar a imagem da Polícia Local Afegã, uma rede de milícias que consideram essencial para a manutenção da segurança e para manter o Taleban sob controle. Apesar de compartilharem a meta de segurança, os promotores e defensores de direitos humanos querem mostrar que este é um novo Afeganistão, onde a força das armas não fala mais alto que o Estado de direito.
"O problema é que essas pessoas são iletradas e sem educação", disse Safi, o promotor militar, falando em geral da polícia e em particular da unidade envolvida no caso. "Eles não foram informados sobre qual é seu trabalho, eles não têm um código de conduta, eles são em sua maioria ex-milicianos que ainda têm a mentalidade de 15 anos atrás –eles ainda pensam que podem matar impunemente, estuprar impunemente." "Eu dou muito apoio ao programa da Polícia Local Afegã", ele acrescentou. "É um programa muito bom, mas tenho muitas críticas ao processo de recrutamento e seleção." Apesar das falhas do programa, disse Safi, como promotor ele prefere lidar com a polícia local, que está sob jurisdição do Ministério do Interior, lhe dando maior autoridade para agir do que é o caso com outros grupos armados. Lal Bibi e sua família não sabem se justiça será feita ou se permanecerão humilhados em sua comunidade por ter uma filha que, segundo as tradições tribais pashtun, foi maculada. As famílias em circunstâncias semelhantes às vezes matam a vítima, por causa da desonra percebida. Na semana passada, a família, que nunca visitou a vasta capital afegã, Cabul, fez a viagem de 10 horas de táxi da cidade de Kunduz, onde se refugiou, e pagou por quartos de hotel para que o pai e avô da menina pudessem tentar persuadir as autoridades do governo a ouvirem sua história. "Nós nunca estivemos aqui antes, e você sabe, é muito difícil conseguir ser atendido pelas autoridades", disse o avô de Lal Bibi, Hajji Rustam, enquanto olhava para seus sapatos, que ele poliu para as visitas aos ministérios. Lal Bibi e sua mãe também vieram; como mulheres elas não podiam permanecer sozinhas em casa, em Kunduz. Mas ficaram em outro quarto e não estavam em condições de receber visitantes, disse o pai da menina. Outros dois suspeitos foram detidos no último fim de semana, incluindo o suposto cabeça do crime, o comandante Muhammad Ishaq Nezaami, que comandava a unidade da polícia local e é acusado de ter ordenado a abdução de Lal Bibi. Antes, o chefe de polícia de Kunduz e outros disseram que Nezaami e o outro homem tinham deixado a área, mas os dois foram detidos no posto avançado onde antes trabalhavam. A ordem de Karzai de desarmar a unidade da polícia envolvida no incidente parece ter sido superada pelos eventos, já que quatro dos cinco membros envolvidos da unidade foram detidos. Enquanto isso, o general Samiullah Qatra, o chefe de polícia provincial de Kunduz, e o coronel Mohammed Shutor, o chefe do programa de polícia local em Kunduz, trouxeram uma nova unidade. Ela é liderada pelo irmão de Nezaami, uma decisão que enfureceu alguns moradores, que a consideraram uma provocação deliberada. "O irmão de Nezaami estava dirigindo o caminhão de Nezaami, então as pessoas acham que ele está de volta e isso as assusta", disse Hajji Balkhi, um ancião do vilarejo de Lal Bibi. "É um insulto, não apenas a Hajji Rustam, mas a todos nós." A província de Kunduz, onde ocorreram os eventos, talvez seja a mais turbulenta no norte do Afeganistão. Apesar de uma tênue segurança ter sido obtida recentemente, há menos de 18 meses o Taleban era uma ameaça direta à capital provincial de mesmo nome; eles assassinaram o governador anterior e o chefe de polícia anterior, o general Daoud Daoud. Como Qatra, o chefe anterior tinha servido como comandante da Aliança do Norte, que apoiou as forças americanas na derrubada do governo do Taleban em 2001. Qatra, como seu chefe, o ministro do Interior, Bismullah Khan, ficou entusiasmado quando os americanos propuseram a formação da Polícia Local Afegã, grupos de homens locais com armas leves, treinados pelas forças das Operações Especiais para ajudar no combate ao Taleban. Alguns grupos armados informais com laços com a Aliança do Norte, assim como alguns talebans que abandonaram a insurreição, se juntaram a essas novas unidades locais, disse Shutor. Por sua vez, Qatra prefere ver o caso de Lal Bibi como um assunto familiar, em vez de um crime sério. "Não houve estupro envolvido; foi um casamento forçado", ele disse vigorosamente. "E neste caso, a família alega que sua filha foi dada como 'baad'", se referindo à prática de negociar as mulheres como pagamento para solução de disputas entre famílias, clãs ou tribos. Tipicamente, quando uma garota é dada como baad, isso é resultado de uma reunião dos anciãos na qual ambas as famílias contam com representantes. Qatra não negou que o irmão de Nezaami agora lidera a unidade, mas disse que isso é irrelevante. "Um crime é uma coisa pessoal; quem cometeu o crime deve ser punido", ele disse. "Você não pode punir meu irmão pelo crime que eu cometi." Ele rechaçou a ideia de que poderia estar tentando intimidar a família, dizendo que não tinha escolha a não ser substituir a unidade por outra. "Nós precisamos daquele posto avançado para impedir que o vilarejo caia nas mãos do Taleban", ele disse. Isso não serve como conforto para Lal Bibi e sua família, já que sentem que não podem voltar para suas tendas e ovelhas: eles dizem que estão sob ameaça porque falaram contra os homens armados que supostamente deveriam protegê-los. Safi, o promotor, disse que já lidou com muitos casos, mas este "reafirmou minha posição contra os maus-tratos às mulheres". Referindo-se aos muitos projetos para mulheres financiados pela comunidade internacional, ele acrescentou: "Eu percebi –todo esse dinheiro que gastaram para melhorar a situação das mulheres e ainda há muitas mulheres que sofrem maus-tratos todo dia e cuja condição de vida não mudou muito".

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