“O sistema simplesmente não é relevante para a vida”, diz Asher Gold. Ele usa calças pretas, um chapéu de veludo preto e uma camisa violeta pálida, a um tom de diferença do branco, um tom de diferença da vestimenta padrão do homem judeu ultra ortodoxo. Os outros quatro jovens na mesa são mais circunspectos em relação à dissidência; eles usam camisas brancas. O café que escolheram para me encontrar fica no pátio um andar abaixo do nível da rua num distrito comercial de Jerusalém: um lugar público porém longe da vista, apropriado para palavras severas. Gold, 25, está falando sobre o curso normalmente aceito da vida ultra ortodoxa em Israel, no qual os homens dedicam a maior parte ou toda a sua vida adulta ao estudo religioso em vez de trabalhar para se sustentar. “Em determinado ponto a pessoa olha para a situação e diz: 'isso simplesmente não pode continuar'”, diz ele. “'Ninguém está jogando pães do céu. Você precisa trabalhar.'” “O maná”, diz Elimelech, outro do grupo, “não está descendo”. “Existiu uma sociedade ideal, uma sociedade que não pode existir no mundo real, e que mesmo assim existiu”, disse um terceiro. “As pessoas viviam numa utopia”, diz Gold, “até que a realidade estilhaçou-a”.
Outros israelenses descartariam a afirmação de que a sociedade ultra ortodoxa era uma utopia, observando que o maná que a alimenta não vêm do céu, mas do governo, e que ainda há muito caindo do céu. Mas eles não discordariam de que a ultra ortodoxia, da forma como é vivida em Israel, tornou-se insustentável. A ultra ortodoxia é uma subcultura cujos membros vivem segundo uma versão rigorosa da lei religiosa judaica e buscam não se envolver com a sociedade ao redor. O expediente para ser um povo à parte incluem vestir-se de uma forma distinta, viver em bairros auto segregados e ter escolas separadas. Os judeus ultra ortodoxos de hoje, ou Haredim, casam-se cedo e têm muitos filhos. Em Israel, onde o serviço militar é obrigatório para os outros homens judeus e a maioria das mulheres judaicas, os ultra ortodoxos têm sido amplamente isentos. Este verão a questão de todos carregarem um “fardo igual” pela defesa nacional esquentou e ganhou espaço na política israelense. Mas o argumento pelo recrutamento pode ser uma distração em relação à verdadeira crise econômica e política. A comunidade Haredim está alarmantemente pobre, subempregada e dependente do restante de Israel. Ela também está crescendo rapidamente. A menos que a educação ultra ortodoxa mude e os Haredim sejam integrados ao mercado de trabalho, a economia israelense poderá ruir. “Poderíamos perder o país”, alerta o renomado economista israelense Dan Ben-David.
Às margens da própria sociedade ultra ortodoxa, cresce uma sensação de desastre econômico iminente. Entretanto, uma mudança de direção está repleta de desafios. Ela exigiria que a sociedade Haredi enfrentasse a integração. Exigiria que o Estado gastasse mais dinheiro, e não menos, com os ultra ortodoxos a curto prazo. Quando mais esta mudança for protelada, mais difícil será para ser realizada politicamente. A menos que haja uma rebelião política interna na comunidade ultra ortodoxa, o poder parlamentar dos partidos Haredi opostos à reforma continuará crescendo por um motivo simples: a proporção de Haredi no eleitorado está crescendo. E o fato de que os partidos ultra ortodoxos se tornaram parceiros leais de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro e líder do Partido Likud, de direita, é mais uma barreira para a mudança. Os judeus ultra ortodoxos compreendem cerca de um décimo da população de Israel, dependendo de como as estatísticas identificam quem é Haredi. Ao passo que a população israelense como um todo se expande em 1,7% ao ano, a comunidade Haredi cresce a 7% anualmente. A mulher ultra ortodoxa média em Israel tem 6,7 filhos, três vezes mais do que outras mulheres judias israelenses, de acordo com um estudo do governo. Como resultado, a comunidade Haredi é surpreendentemente jovem. Entre os alunos da escola primária em Israel, cerca de um quinto são ultra ortodoxos. O número crescente de Haredim tem um feito direto no recrutamento para o serviço militar israelense. Desde seu estabelecimento em 1948, a convocação é obrigatória para a maioria judaica. As mulheres judias religiosas podem recusar e os homens judeus engajados em estudos religiosos em tempo integral também podem protelar a convocação, o que os homens Haredi costumam fazer até ficarem velhos demais para servir o exército. Um relatório recente feito pelo departamento de pesquisa do Knesset, o parlamento israelense, mostra que em 2005, 8,4% dos homens judeus sujeitos à convocação foram isentos por estudos religiosos. No ano passado, este número foi de 13% - mais do que o número de homens isentos por quaisquer outros motivos.
À medida que a proporção de homens israelenses que defendem o país diminui, aumenta o descontentamento entre os que servem e seus familiares. Mas o fardo econômico carregado pela maioria é mais grave. Não está determinado que o exército devesse crescer com a população. Mas a economia israelense de fato precisa se expandir, e tem mais dificuldades para fazer isso uma vez que uma minoria significativa da população não pode ou não quer trabalhar. Mais uma vez, os números contam a história. Em 1979, 21% dos homens ultra ortodoxos com idade entre 35 e 54 anos não estavam empregados. Isso era duas vezes a proporção entre os outros judeus. Mas as coisas pioraram muito. Em 2008, dois terços dos homens Haredi na mesma faixa etária não estavam trabalhando para seu sustento.
Não é de surpreender, portanto, que 55% das famílias Haredi de Israel vivam abaixo da linha de pobreza, de acordo com o relatório mais recente do Instituto Nacional de Seguro do governo. A comunidade é profundamente dependente de fundos do governo e da filantropia privada. Homens que estudam recebem pequenos ordenados, pagos com uma mistura de assistência do estado e doações. Dar aulas nas escolas financiadas pelo estado e yeshivot (academias talmúdicas) e trabalhar para o rabinato estatal são importantes fontes de emprego. A falta de escolaridade faz com que seja difícil encontrar outros tipos de emprego, especialmente para os homens. Meninos e meninas frequentam escolas separadas. A religião domina o currículo, especialmente nas escolas masculinas. Na Nitei Meir, uma escola fundamental num assentamento Haredi na Cisjordânia conhecida como Beitar Illit, os meninos estudam temas religiosos das 8h30 às 14h30, depois têm duas horas de estudos gerais. O rabino Yosef Roxovsky, diretor educacional, disse-me que o currículo inclui aritmética, hebraico e história. Educação cívica não está na lista. Nem inglês, um requisito para muitos empregos e para o ensino superior. Os meninos normalmente terminam o ensino primário e vão para a yeshivot, que ensina apenas temas religiosos. Seus estudos se encaixam com as ideias da comunidade. Mas para a sociedade em torno, eles não foram além do primeiro grau, na verdade nem chegaram a completá-lo. O quadro econômico mais amplo tem sérias implicações para os Haredim. Os formados em escolas ultra ortodoxas têm uma chance ainda menor de se sustentar. Se conseguem emprego, é normalmente em setores que atrasam a economia. A pobreza aumentará, mas também os custos do país para ajudar os pobres. Os jovens israelenses com maior escolaridade, como desenvolvedores de softwares, acadêmicos e médicos, podem levar suas habilidades para fora; e muitos já o fazem. “Países fracassam”, alerta Ben-David. “A Grécia está à beira do fracasso. A Argentina já se acostou a ele.” Os ultra ortodoxos precisam se juntar à sociedade israelense. Infelizmente, não há uma forma fácil para isso acontecer. Tome o alistamento como exemplo, o tema que sacudiu a coalizão de Netanyahu neste verão. Durante anos, o governo tentou atrair os Haredim para servir o exército e continuar no mercado de trabalho. Em 1999, as Forças de Defesa de Israel criaram um batalhão de infantaria para os Haredim, supervisionado por rabinos ultra ortodoxos. Nenhuma mulher servia em sua base. Um novo programa para homens Haredi permite que eles se alistem aos 22 anos – normalmente depois de terem iniciado suas famílias – para serem treinados como técnicos. Mesmo com essas condições preferenciais, os dois programas atraíram menos de um sexto dos Haredi que poderiam se alistar. Em fevereiro, o supremo tribunal israelense tomou uma decisão quanto ao assunto. Ele determinou que uma lei que permite a postergação para estudos discrimine outros convocados, e deu ao Knesset um prazo para aprovar uma lei mais justa. Em maio, o Partido Kadima, centrista, juntou-se à coalizão de Netanyahu, aparentemente fornecendo ao parlamento a base para a reforma: a maioria do governo não dependia mais dos 15 membros ultra ortodoxos do parlamento que se opõem ao fim da postergação. Yahanan Plesner, do Kadim, produziu uma proposta que incluía novos caminhos para o serviço militar Haredi, um tento máximo para postergar o serviço depois dos 22 anos e multas para os que evadirem o serviço militar. Netanyahu rejeitou o plano, oferecendo apenas uma reforma mais suave. Depois de apenas 70 dias no governo, o Kadima deixou a coalizão. Por que simplesmente não permitir que a postergação expire, convocar os Haredi de 18 anos e prender qualquer um que se recuse a aparecer? A sociedade separada ficou forte demais para permitir isso. Netanyahu trata os partidos ultra ortodoxos como parceiros de quem ele não pode se dar ao luxo de se divorciar. Até defensores ávidos da convocação igualitária temem que aplicar as mesmas regras dos outros israelenses aos Haredim pode provocar uma recusa em massa e garantir o status de mártir aos homens Haredi presos. “Há uma contradição inerente”, disse-me um dos jovens Haredi no café. “Convocar todos não é realista. Mas qualquer compromisso significa que o fardo (do exército) não é compartilhado igualitariamente.” Ele estava certo. Se adotadas, as propostas de Plesner seriam contestadas política e legalmente por causa de novas formas de tratamento preferencial. A insistência ultra ortodoxa numa separação rígida dos sexos também é contrária ao esforço do IDF para promover oportunidades iguais para as mulheres. Se uma mulher não pode comandar uma unidade técnica porque seus soldados são ultra ortodoxos, trata-se de um cargo disponível a menos para as oficiais femininas. O problema de gênero aponta para um dilema mais profundo. Para a mentalidade tradicional israelense, o IDF é o “exército do povo” – no sentido de que todos deveriam compartilhar os deveres e os perigos, mas também que o serviço militar forja uma identidade comum israelense. A demanda de que os Haredim sirvam é também uma demanda para que eles se juntem à sociedade comum. Mas o exército é um veículo ruim para a integração pacífica. Ou o exército terá de impor a ética da maioria ou permitir que a minoria imponha suas regras. Apesar da comoção causada pela evasão da convocação, faz muito sentido começar a integração gradualmente no mundo do trabalho. Essa reforma, pode-se pensar, teria o apoio total de Netanyahu. Um neoliberal linha-dura, Netanyahu serviu como ministro das finanças do primeiro-ministro Ariel Sharon entre 2003 e 2005. Ele reduziu impostos sobre os ricos e cortou ajuda aos pobres, inclusive benefícios para crianças em famílias grandes. Críticos do apoio do governo aos ultra ortodoxos argumentam que essas medidas tiveram um efeito retardado de pressionar os Haredim a ir trabalhar, como pode se comprovar por um pequeno aumento no emprego desde 2007. De fato, o método de Netanyahu equivaleu a usar uma chave de fenda para retirar um espinho. Mais Haredim começaram a expressar uma sensação de crise. O treinamento vocacional e programas universitários especiais para os Haredim cresceram gradualmente. “A longo prazo, quando olharmos para trás, veremos que 2003 foi o ponto de virada”, diz o rabino Beazley Cohen, ex-estudante do Talmud de 30 e poucos anos que se tornou um defensor da ideia de que os Haredim passem a trabalhar. Isso não significa que Cohen esteja endossando as políticas de Netanyahu; ele está simplesmente descrevendo seu impacto. A perda de benefícios atingiu um vasto número de pessoas; só uma fração respondeu procurando trabalho. O aumento dos empregos é maior entre as mulheres ultra ortodoxas do que entre os homens. Entre os homens, o aumento do emprego se deu principalmente entre aqueles abaixo dos 35 anos. Embora mais Haredim estejam trabalhando, o número abaixo da linha de pobreza não caiu, de acordo com o Instituto Nacional de Seguro. Isso sugere que os recém-empregados são mal pagos ou estão em empregos de meio período. Para os homens Haredi, os obstáculos para trabalhar podem ser imensos, diz Cohen. O mundo secular é uma cultura estrangeira, e o ambiente de trabalho é território desconhecido. Os mais atingidos pela crise econômica são pais acima de 40 anos com muitos filhos. Mas deixar a academia religiosa para fazer um treinamento profissional pode custar a um homem sua pequena bolsa de estudos; e um emprego inicial para pessoas com poucas habilidades pode não pagar muito mais. E quanto mais velha é a pessoa, mais difícil é fazer um treinamento e encontrar um emprego. Perguntei a Cohen se há uma geração perdida de homens Haredi que não têm chance de se empregar. “Não quero chegar a esta conclusão”, disse ele, “mas às vezes sinto que é verdade.” No nível macro, a relação econômica entre Israel e a sociedade ultra ortodoxa é um desastre iminente. A maioria está ultrajada com razão por pagar pela escolha de estilo de vida de uma minoria. Mas no nível individual, um casal ultra ortodoxo de 30 e poucos anos com seis filhos têm escolhas muito limitadas. O neoliberalismo é ainda menos eficiente para lidar com seu dilema do que para lidar com outras formas de pobreza. Um caminho para fora da crise exigirá concessões culturais significativas por parte tanto da minoria quanto da maioria – e demandará mais gastos em vez de cortes do governo. A concessão pela maioria é reconsiderar o compromisso emocional com o “exército do povo”. A população de Israel cresceu e o exército se tornou mais avançado tecnologicamente. A questão de se a convocação obrigatória ainda é necessária está na consciência das pessoas há quase duas décadas, mas os políticos fugiram dela. Começando a mudança por um exército voluntário, o governo poderia retirar um dos muitos obstáculos para os homens Haredi irem trabalhar. Para retirar os outros, seria necessário investir em mais treinamento profissional, incluindo educação e ajuda para aprender a cultura do mundo do trabalho. O estado também precisaria pagar benefícios para aqueles que estão no processo de treinamento, para que possam sustentar suas famílias. Fazer com que os acadêmicos mais velhos do Talmud trabalhem pode ser impossível. O governo já os ajudou a não serem empregáveis e tem responsabilidade de continuar sustentando a eles e seus dependentes. Mas ele precisa deixar claro que os benefícios estão acabando; os homens que estão agora com 20 anos não podem esperar uma vida inteira de estudos com ajuda do governo. Da mesma forma, ele precisa ir reduzindo o pagamento dos professores yeshiva, mas lentamente. A longo prazo, a educação religiosa não deveria ser uma questão do estado. Mas a educação geral certamente é. Os pais têm o direito de educar seus filhos de acordo com sua fé, mas esse direito deve ser equilibrado com os direitos da criança de poder se sustentar e compreender o mundo à sua volta. As escolas ultra ortodoxas devem ensinar matemática, inglês, ciências, história, educação cívica e outras disciplinas básicas de uma educação moderna. O problema é que Netanyahu e outros políticos israelenses não parecem ter a coragem de fazer essa reforma essencial. Mas postergá-la só a torna mais difícil. Como aponta Ben-David, as crianças Haredi de hoje serão os eleitores de amanhã. Em determinado ponto, poderá não haver uma maioria para votar pela reforma. A alternativa ao colapso é que os líderes israelenses afirmarem claramente o que os jovens ultra ortodoxos mais honestos já sabem: o maná não cairá para sempre do céu.
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