Folha de São Paulo
Domingo, 13 de janeiro de 2013
Operação antigay
Com a bênção dos aiatolás, governo do Irã incentiva e subsidia cirurgias
de mudança de sexo em nome de manter o país 'livre do homossexualismo'
Fotos Maryam Rahmanian | ||
Mahsa (esq.), ao lado de sua parceira, Ahura, em cafeteria de Teerã; os dois querem fazer operação para mudar de sexo |
SAMY ADGHIRNIDE TEERÃ
Quando criança, Sara preferia jogar futebol com os meninos a brincar de
boneca. Mocinha, ela passou a sofrer todo dia por ter que usar véu e
roupas femininas.
Hoje com 17 anos, Sara diz ter certeza de que nasceu com o sexo errado.
Se conseguir convencer as autoridades, ela ganhará permissão e subsídio
para ser operada e adotar uma nova identidade, com nome masculino.
A República Islâmica do Irã abençoa e incentiva operações de troca de
sexo, em nome de uma política que considera todo cidadão não
heterossexual como espírito nascido no corpo errado.
Com ao menos 50 cirurgias por ano, o país é recordista mundial em mudança de sexo, após a Tailândia.
Oficialmente, gays não existem no país. Ficou famosa a frase do
presidente Mahmoud Ahmadinejad dita a uma plateia de estudantes nos EUA
em 2007, de que "não há homossexuais no Irã". A homossexualidade nem
consta da lei. Mas sodomia é passível de execução.
Já transexuais, aos olhos dessa mesma lei, são heterossexuais vítimas de uma doença curável mediante cirurgia.
Essa visão partiu do próprio fundador da república islâmica, aiatolá
Ruhollah Khomeini, que emitiu em 1984 um decreto tornando o procedimento
lícito.
Khomeini comoveu-se com o caso de Feyreddun Molkara, um devoto xiita que o convencera de que era mulher presa em corpo de homem.
A bênção aos transexuais continuou após a morte de Khomeini, em 1989, apesar da objeção de alguns clérigos.
Prevaleceu a corrente que defende a mudança de sexo como prova de que o
islã xiita, dominante no Irã, capta melhor a mensagem divina.
"Sunitas dizem que é mexer com a criação divina. [...] Mas ninguém está
mudando o atributo na natureza criada por Deus. O humano continua
humano", escreveu o clérigo Mohammad Mehdi Kariminia, simpatizante dos
transexuais. "Trata-se apenas de sintonizar corpo e mente."
SUBSÍDIO
No início dos anos 2000, o Estado passou a subsidiar um terço do valor
total das operações, que variam entre US$ 8 mil e US$ 10 mil.
A adolescente Sara quer candidatar-se a esse benefício. Ela deu o
primeiro passo rumo ao sonho de virar homem numa manhã recente, ao
apresentar-se de tênis e calça baggy numa clínica de Teerã credenciada
para atender transexuais.
Nervosa e agitada na sala de espera, ela não quis falar com a Folha. A avó, que a criou desde a separação dos pais, a acompanhava.
"Ela nunca rezou, mas fez promessa de cumprir com as orações para o
resto da vida, caso consiga ser operada", disse a avó, após Sara entrar
na sala do cirurgião Bahram Mir-Jalili, pioneiro no Irã.
Formado na França, Mir-Jalili afirma que candidatos à operação passam
por reiteradas sessões com médico, psicólogo e psiquiatra antes da
elaboração de um parecer.
"O processo leva meses até descartar casos como esquizofrenia e
selecionar apenas pessoas com transtorno profundo de identidade de
gênero", diz o médico. Ele avalia em 40 mil o número de transexuais
iranianos, diagnosticados ou não.
À comprovação clínica sucede o trâmite jurídico. Se declarada
transexual, Sara deverá apresentar-se a um juiz, que validará ou não o
parecer, após nova avaliação por médicos legistas.
Confirmado o laudo, ela poderá acionar a Organização do Bem-Estar Social, que administra os subsídios.
"O regime tem muitos problemas, mas é inegável que a assistência social
funciona bem", afirma Mir-Jalili, que diz ter feito 320 mudanças de sexo
nos últimos dez anos.
Um dos casos mais recentes operados pelo médico é o de uma professora de
primário de 34 anos que de agora em diante se chama Daniel.
Ainda em observação após a retirada dos seios e colocação de prótese
peniana, Daniel espera com ansiedade a emissão da nova identidade.
Mas teme voltar para a cidade de interior onde vive. "Meu pai e irmãos
não sabem da cirurgia, só contei para a minha mãe e uma irmã."
Daniel afirma que continuará usando véu na escola em que trabalha
enquanto espera ser removido para outra cidade, onde pretende começar do
zero a vida como homem, ao lado da namorada.
PRECONCEITO
O preconceito é queixa unânime dos transexuais no Irã. Roya, 34, não
conseguiu emprego desde que tornou-se mulher, há quatro anos.
"Só poderei trabalhar num lugar em que ninguém desconfie do meu
passado", diz a transexual, que voltou a ter voz masculina após
interromper o tratamento com hormônios devido às graves perturbações de
humor.
Outra transexual chamada Roya, loira artificial de 27 anos carregada de
batom rosa choque, diz não precisar trabalhar, pois o marido ganha bem.
Mas diz sofrer assédio dos policiais toda vez que é levada para a
delegacia.
"Quando percebem que sou transexual, me oferecem dinheiro por sexo. Uma
vez o delegado quis transar comigo mesmo sabendo que meu marido me
esperava lá fora."
Todos os transexuais iranianos ouvidos pela Folha, incluindo os
que se disseram muçulmanos devotos, relataram problemas com a família.
"Rezo todo dia para minha mãe me aceitar e para conseguir o dinheiro da
operação", emociona-se Mahsa, 25, que vive no limbo dos transexuais
clinicamente reconhecidos, mas sem condições de arcar com a cirurgia.
Mahsa namora Ahura, 18, na mesma situação. Ele já se considera mulher e
anda na parte feminina dos transportes públicos. Ahura não usa véu e tem
pelo no rosto de tanto injetar testosterona.
"Há sempre alguém insultando Mahsa quando andamos na rua. Queria partir
para cima, mas não tenho força de homem", diz Ahura, cuja mãe acaba de
recuar da decisão de pagar sua cirurgia.
Após várias tentativas de suicídio, Mahsa e Ahura vivem de favor na casa
de amigos. Juram não ter vida sexual. "De que jeito? Não reconhecemos
nossos órgãos sexuais. Só ficaremos à vontade depois de operados", diz
Mahsa. Ela deseja ter uma vagina criada a partir de um pedaço de
intestino, conforme técnica do doutor Mir-Jalili.
Já Ahura quer um formato de pênis que privilegie a sensibilidade em
detrimento da forma. Mas o casal foi alertado por amigos sobre a má
qualidade das operações iranianas. "Passei por três cirurgias para
corrigir a primeira", diz Roya, a solteira.
Uma transexual operada confidenciou um sentimento amplamente
compartilhado em silêncio: "Não teria mutilado meu corpo se a sociedade
tivesse me aceitado do jeito que eu nasci".
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