Numa noite de agosto passado, a plateia do teatro Vahdat, no centro de
Teerã, presenciou um momento único na história da República Islâmica do
Irã. Pela primeira vez desde a chegada dos aiatolás ao poder, há 35
anos, uma mulher cantou sozinha em público --e com a bênção do regime.
No ponto culminante de uma adaptação da ópera "Gianni Schicchi", de
Puccini, a soprano Shiva Soroush, 28, ergueu a cabeça e estufou o peito;
sua voz firme e cristalina entoou as lamúrias de sua personagem. Ao fim
do solo, o frisson explodiu em gritos e aplausos.
O canto solitário não durou nem meio minuto. Foi suficiente para
enterrar o tabu pelo qual uma voz feminina só era lícita se acompanhada
de uma masculina.
Naquela noite, o presidente Hasan Rowhani, novo xodó do Ocidente, já
governava o país. Mas o aval havia sido emitido, meses antes, pela
equipe do conservador Mahmoud Ahmadinejad.
"Eu via no rosto das pessoas um misto de alegria e espanto. Eu estava em
êxtase. Nunca me imaginei cantando na frente de membros do regime",
recordou a moça, semanas depois, num café ocidentalizado da capital
iraniana. "Sinto que essa reviravolta prenuncia mais coisas boas",
sorriu a cantora.
Shiva nasceu e cresceu sob o regime teocrático e nunca teve dinheiro
para viajar ao exterior. Mas ela faz parte da legião de iranianas,
anônimas ou ilustres, que desbravam caminhos para tentar recuperar a
proeminência perdida com a queda do xá Mohammad Reza Pahlavi, em 1979.
Apesar de ainda viverem sob leis machistas e desiguais, as iranianas
impõem-se em todas as áreas da sociedade. Três décadas e meia após a
revolução, o Irã voltou a ser um dos países de maioria islâmica com
ambiente mais favorável --ou menos adverso-- para a mulher.
A comparação chega a ser especialmente embaraçosa para os vizinhos do
Irã. As sauditas são atreladas por lei a um tutor --irmão, pai ou
marido-- e não podem nem dirigir. No Qatar, casas tradicionais possuem
duas salas de estar, uma para receber convidados, outra para manter as
cônjuges, irmãs e filhas longe das visitas. As afegãs devem abster-se de
falar com homens que não sejam ligados a elas por vínculos familiares.
No quesito condições de vida básicas da mulher, o Irã também se sai
melhor que outras regiões de maioria muçulmana. Metade das marroquinas
não sabe ler e escrever, enquanto a taxa de alfabetização das iranianas
beira os 90%. A mortalidade materna no Irã é de 21 para cada 100 mil
partos, dez vezes menos do que na Indonésia.
Mulheres iranianas são as únicas no mundo legalmente obrigadas a cobrir
cabelo e corpo. Mas elas estudam, trabalham e comandam empresas. São
advogadas e juízas. Nas entrevistas coletivas, são elas que costumam
incomodar os políticos com as perguntas mais certeiras. Madames
poliglotas rivalizam-se à frente das mais prestigiosas galerias de arte
de Teerã.
No Irã, elas não só votam como são eleitas deputadas, prefeitas e
vereadoras. Podem se candidatar a todos os postos para os quais haja
eleições diretas, mas nunca uma mulher foi considerada qualificada para
concorrer à Presidência ou à Assembleia dos Peritos, órgão consultivo
que escolhe e monitora o líder supremo.
O Irã tem mulheres artistas, atletas profissionais, taxistas. Nas
universidades, a fatia feminina ocupa 52% das cadeiras. A poligamia está
em extinção, e os casamentos arranjados, fora de moda. A mutilação
genital, prática mais tribal do que religiosa, é raríssima.
Setareh Nouri, 25, parte da meia dúzia de iranianas que atuam como
pilotos da aviação comercial, diz sentir-se desconfortável quando viaja a
países árabes. "No Irã temos mais liberdade. Aqui posso trabalhar num
ambiente masculino como a aviação, algo impensável no golfo Pérsico",
diz a moça.
A arquiteta Sahere Foruhi, 54, orgulha-se de contrariar frontalmente o
clichê da iraniana submissa. Bem-sucedida, viajada e mãe divorciada,
espreme sua agenda diária entre serviços para a Prefeitura de Teerã e um
escritório no qual tem o ex-marido como sócio.
Sahere avalia que o preconceito ocasional contra mulheres, na rua ou no
mundo dos negócios, se assemelha ao da Itália, onde estudou. "Na maioria
dos países europeus, a situação não é tão diferente da nossa.
Invejável, só a Escandinávia. Ali, sim, as mulheres estão com tudo",
afirma.
Na política, o debate sobre a representação feminina voltou à tona desde
que Rowhani foi eleito, em junho do ano passado, com a promessa de
"promover oportunidades iguais". O presidente, um clérigo xiita que se
autoproclama moderado, enfrenta críticas por não ter criado até agora o
Ministério para Assuntos da Mulher, anunciado na campanha.
Além disso, somente homens constam na sua lista de ministros. Mas três
dos 12 vice-presidentes que apontou são mulheres. A mais proeminente é
Masoumeh Ebtekar, 53, responsável por temas ambientais. Ela ficou famosa
no Ocidente após a Revolução Islâmica, quando, então cursando biologia,
gastou seu inglês perfeito para tratar com a mídia estrangeira em nome
dos estudantes que tomaram a Embaixada dos EUA em Teerã.
O presidente também nomeou duas governadoras (não há eleições diretas
para o posto) e escolheu a veterana diplomata Marzieh Afkham, 51, como
porta-voz da Chancelaria, principal cargo de relações públicas do
Estado.
Prefeitas são só duas, num país com mais de mil municípios. E, fora do
Executivo, a representação feminina se mantém tímida. O número de
deputadas caiu de 13 para 9 no último pleito. Elas ocupam uma fila
exclusiva no plenário de 290 deputados (não há senadores).
ALTIVEZ O mais surpreendente para quem descobre o Irã talvez seja
a altivez cotidiana das iranianas. Elas batem boca no trânsito,
barganham preços implacavelmente e pedem informação na rua a quem bem
entenderem. Médicas atendem homens e vice-versa.
Jovens e idosas são capazes de se unir de repente para livrar da polícia
moral uma mulher interceptada por carregar na maquiagem ou deixar
cabelo fora do véu. A pressão e a gritaria são tamanhas que às vezes só
resta aos agentes recuar da ação.
Nas grandes cidades, a maioria das jovens emenda um namoro no outro.
Quase ninguém se apega à virgindade antes do casamento. "Mantenho uma
lista com os nomes dos meus parceiros. Senão, é impossível lembrar de
todos", diverte-se a tradutora M.J., 24.
Enquanto ocidentais cultivam a imagem da iraniana reprimida, muitos
homens em países vizinhos têm leitura oposta e enxergam a antiga Pérsia
como ninho de mulheres excessivamente liberadas.
Dois anos atrás, um afegão que havia sido pedreiro em Teerã disse à Folha
como via as moças dos bairros nobres onde trabalhava. "As iranianas
bebem, estão sempre maquiadas e se entregam a homens com quem não se
casam. Elas não são boas muçulmanas."
No livro "The Ends of the Earth" (os confins da Terra, em tradução
livre), de 1996, o jornalista americano Robert D. Kaplan expôs suas
impressões sobre a república islâmica. Um trecho diz: "As mulheres em
Teerã te encaram abertamente. Seus olhos olham fundo dentro dos teus.
Cairo não tem muito disso, e Istambul ainda menos".
POTÊNCIA LAICA O relativo avanço da mulher no Irã reflete as
peculiaridades da história nacional. As bases do protagonismo feminino
foram sedimentadas pelo xá Reza Pahlavi, fundador da dinastia homônima.
Um militar linha-dura, mas pouco afeito a tradições, Pahlavi nunca
escondeu a admiração por seu contemporâneo Mustafá Kemal Atatürk, o
líder que pulverizou as fundações islâmicas da vizinha Turquia para
transformá-la em potência laica calcada no modelo europeu.
Em 1936, Pahlavi criou o movimento Despertar da Mulher, que, à revelia
dos religiosos, baniu o uso do véu e incentivou a criação de uma elite
feminina nas ciências, nas artes e nos negócios. Mas, quando a Segunda
Guerra eclodiu, britânicos e russos incomodaram-se com o flerte entre o
xá e a Alemanha nazista e o pressionaram a abdicar em favor do filho.
Ao assumir o trono, em 1941, aos 21 anos, o jovem Mohammad Reza Pahlavi
amenizou a restrição ao véu, mas prosseguiu o projeto de modernização do
pai.
Sob a ditadura de Pahlavi filho, dissidentes eram torturados até a morte
nas masmorras da Savak, a mais cruel polícia secreta daquela geração.
Mas a idade mínima de casamento para meninas saltou de 13 para 18 anos, e
mulheres passaram a ter o direito de pedir o divórcio e de dizer "não" a
maridos que quisessem uma segunda esposa.
Nos anos 1970, alguns bairros de Teerã haviam se transformado em édens
cosmopolitas, onde se viam cabelos soltos ao vento, minissaias e moças
bebendo em bares. A face mais visível do glamour iraniano era a
imperatriz Farah Diba, mulher do xá, que se dividia entre a filantropia
no Irã e o jet set.
REVOLTA A narrativa ocidental, porém, tende a omitir a rejeição
que essa ocidentalização na marra sofria por amplos segmentos da
população. No Irã profundo e na miséria das periferias infladas pela
industrialização, um sentimento de revolta e alienação fervilhava.
Um dos primeiros atos públicos do aiatolá Ruhollah Khomeini, em 1963,
quando era um clérigo provinciano, foi um protesto contra a lei que
garantiu às mulheres o direito de votar e concorrer em pleitos
municipais. Khomeini foi preso temporariamente. No ano seguinte, ele
partiria para o exílio.
Só retornou ao país em 1979, para comandar a revolução, dessa vez com
uma base popular que incluía intelectuais, comunistas e a classe média
liberal, unidos pela repulsa à autocracia do xá. Em sinal de apoio a
Khomeini, mulheres seculares marchavam de véu islâmico pelas ruas de
Teerã. "Todas nós participamos da revolução. Nunca imaginamos o que
viria depois", suspira a médica A.K., 53.
Meses após a queda do xá, Khomeini expurgou segmentos laicos da coalizão
que o apoiava e pôs em prática seu projeto de implantar o "governo de
Deus". No afã de eliminar o que via como corrupção ocidental, anulou
leis familiares da era Pahlavi e impôs um modelo de sociedade patriarcal
baseado numa interpretação ultraconservadora da sharia, a lei islâmica.
O limite mínimo para casamento das mulheres caiu para nove anos --nessa
idade, nas escolas, as meninas passam por uma cerimônia que marca a
entrada na puberdade e fixa, por isso, a obrigatoriedade do véu. Na
prática, porém, meninas de até 13 anos podem ser vistas com cabelos
descobertos.
Elas perderam acesso a várias profissões, como a de juiz, e passaram a
viver sob um regime extremamente desfavorável, que as prejudica em
aspectos cruciais como o direito a heranças e guarda de filhos. A
propaganda transformou o cânone da esposa dócil e zelosa em pilar da
ideologia oficial. A lista de atividades banidas às mulheres incluiu
desde o canto até andar de bicicleta. Espaços públicos, como transporte
coletivo ou escolas, se dividiram segundo o gênero.
Três anos após a revolução, não somente o véu havia se tornado
obrigatório como as mulheres foram proibidas de se maquiar ou andar com
homens que não fossem da família, sob pena de se expor à chibata ou à
cadeia.
APEDREJAMENTO Adultério tornou-se passível de execução por
apedrejamento. A carência de dados oficiais a respeito desse tipo de
pena e o fato de que ela, em muitas ocasiões, é aplicada por cortes
locais (que podem agir de maneira autônoma) não permite estimar com
precisão sua ocorrência.
Organizações de defesa de direitos humanos fazem avaliações divergentes
da situação, mas é seguro afirmar que até o início dos anos 2000 o
apedrejamento havia sido imposto dezenas de vezes, incluindo aqueles
contra homens.
"As políticas islamitas geraram uma posição extremamente desvantajosa
para as mulheres ao reforçarem a dominação masculina, restringir a
autonomia feminina e criar um padrão de relações entre gêneros
profundamente desigual", escreveu a feminista Valentina Moghadam,
radicada no Ocidente, em artigo científico produzido para o centro de
estudos americano Wilson Center, em 2004.
Dois acontecimentos, porém, modificaram de forma inesperada a condição
feminina no Irã. O primeiro foi a disparada do número de mulheres nas
universidades após a revolução. Nos tempos da monarquia, famílias
conservadoras preferiam manter as filhas dentro de casa para
preservá-las de ambientes vistos como promíscuos. A adoção de rígidas
leis morais tranquilizou os patriarcas, que passaram a permitir o estudo
das meninas. Isso pavimentou o caminho para os altos níveis de
instrução das iranianas observados hoje.
O segundo fator decisivo foi a guerra deflagrada em 1980, quando tropas
do ditador iraquiano Saddam Hussein atacaram e invadiram o Irã, com
anuência dos EUA. Ao longo de oito anos, o conflito mobilizou, matou e
mutilou centenas de milhares de homens, abrindo espaço para maior
participação das mulheres no mercado.
A situação da mulher continuou progredindo após o fim da guerra e a
morte de Khomeini, em 1989. No plano econômico, o rastro de inflação,
desemprego e escassez de recursos pós-conflito compeliu o presidente Ali
Akbar Hashemi Rafsanjani (1989-97) a restringir o crescimento
demográfico. Graças a uma bem-sucedida política de planejamento
familiar, a média de filhos por mulher despencou de 5,2 em 1986 para 1,6
em 2011.
Durante o governo Rafsanjani, a polícia moral se tornou menos agressiva.
Em 1992 surgiu a revista "Zanan", primeira publicação local para o
público feminino.
A gradual abertura interna culminou com a eleição à Presidência do
reformista Mohammad Khatami, em 1997. Iniciava a era dos véus coloridos,
dos batons berrantes e das roupas mais justas. Plásticas no nariz e
implantes de silicone viraram febre, e a idade mínima para que as
mulheres se casassem subiu para 13 anos.
A época selou, ainda, o início da disseminação em larga escala das
antenas parabólicas (ilegais, mas onipresentes) e da internet (acessada
graças a programas que contornam os filtros do regime). Muitos recordam a
euforia que contagiou setores da classe média devido à proliferação de
shows, filmes e peças de teatro.
A então crescente sintonia com o mundo externo ajudou a dar voz ao
movimento feminista. Em 2003, a juíza e militante de direitos humanos
Shirin Ebadi ganhou o Nobel da Paz. Sob Khatami, mulheres acederam ao
primeiro escalão do governo e, em 1998, a cientista política Zahra
Rahnavard assumiu o comando da Universidade Alzahra de Teerã,
tornando-se a primeira reitora da república islâmica.
RETROCESSO Muitas conquistas retrocederam com a chegada de
Ahmadinejad ao poder, em 2005. A guarda moral voltou a infernizar as
moças. A revista "Zanan" foi banida. A Justiça, por sua vez, tornou a
sentenciar morte por apedrejamento, no caso de Sakineh Ashtiani, acusada
de adultério e cumplicidade no assassinato do marido. Sob pressão
internacional, o Irã recuou da lapidação, mas manteve a mãe de dois
filhos na prisão em situação indefinida.
Há duas semanas, o chefe da Comissão de Direitos Humanos do Irã,
Mohammad-Javad Larijani, anunciou que Sakineh havia sido libertada por
"bom comportamento". O Comitê Internacional contra o Apedrejamento, ONG
com sede na Europa, dá outra versão. A acusada teria sido solta após
tentar se matar engolindo pregos. "Sua morte geraria uma pressão
terrível contra o regime, que preferiu se livrar do incômodo", disse à Folha uma fonte do comitê.
Mas o pior legado de Ahmadinejad quanto à mulher, segundo uma ilustre
feminista, foi a paralisação da luta contra aquela que continua sendo a
maior injustiça às iranianas: inferioridade perante a lei.
"Perdemos oito anos", diz, por telefone, Sussan Tahmasebi, 47, radicada
nos EUA. A exemplo de Shirin Ebadi --que se exilou no Reino Unido após a
controversa reeleição de Ahmadinejad, em 2009--, Tahmasebi teve de sair
do Irã após haver defendido mudanças na legislação."Pessoalmente,
culturalmente ou socialmente, as mulheres obtiveram avanços. Mas a lei
está em defasagem gritante com a realidade", lamenta Sussan.
No tribunal, o testemunho feminino ainda vale metade do masculino. O
"preço do sangue", indenização paga pela família de um assassino a
parentes da vítima, também é inferior em caso de morte de mulher. A
herança dos filhos é maior que a das filhas. Homens podem pedir divórcio
com mais facilidade. A mãe tem chances mínimas de obter a guarda dos
filhos.
Homens também são os principais beneficiados pelo "sigheh", espécie de
"casamento temporário" no qual o casal define um prazo de validade (que
pode ser revogado se houver comum acordo e que vai de algumas horas a 99
anos), para tornar lícitas relações sexuais. O pacto, que não precisa
ser registrado, supõe alguma compensação financeira à mulher. Enquanto
um homem pode acumular vários "sighehs", a mulher precisa esperar a
expiração do acordo para emendar um segundo. Na prática, o dispositivo
acaba sendo um artifício para maquiar prostituição.
Vulnerável nos tribunais, a iraniana carece de recursos para reagir a humilhações de todo tipo.
No ano passado, a Federação Iraniana de Natação se recusou a oficializar
o recorde de Elham Asghari, que, embora coberta da cabeça aos pés por
um traje preto, percorreu 20 km no mar Cáspio mais rápido que qualquer
pessoa no país. A marca da atleta não foi registrada sob o pretexto de
as formas de seu corpo terem ficado à mostra quando ela saiu da água.
Meses depois, autoridades impediram Nina Moradi de assumir a cadeira de
vereadora para a qual fora eleita, no norte do país, alegando que sua
beleza perturbaria o trabalho dos políticos locais.
SURPRESA Para surpresa de muitos ocidentais, existem iranianas
favoráveis à desigualdade. "Essas diferenças existem no Corão. Mulheres
são seres emocionais, incapazes de tomar decisões de forma adequada",
argumenta a dona de casa Mansureh H., 47, que apoia a obrigatoriedade do
véu.
A dona de casa é adepta do chador (barraca, em farsi), espécie de lençol
que cobre da cabeça aos pés, deixando rosto e mãos à mostra. Nos meios
mais jovens e liberais predomina o mais leve hijab, que cobre cabelo e
pescoço.
Muitas iranianas têm visão oposta à de Mansureh e consideram que o véu
constitui a mais contundente ferramenta do regime para controlar as
mulheres.
"É um insulto à sabedoria e à personalidade da mulher. O fato de
quererem decidir como me visto é terrível. Homens não vivem isso",
esbraveja a jornalista Afsaneh J., 33. "O véu restringe muito nossa
vida. Imagine correr no parque de manhã usando isso na cabeça."
Uma das mais conhecidas atrizes do cinema iraniano confidenciou, num
jantar na casa de amigos em Teerã, ter recusado convites de Hollywood
por causa do véu. "Quero continuar no Irã. Não posso aparecer em filmes
nos quais sempre pedem para tirar o lenço e fazer cenas de romance."
Parissa Porouchani, 56, que fundou e comanda o maior grupo de marketing
no país, lamenta que o véu tenha se tornado uma "obsessão do
Ocidente"."Quando vou à Europa, detesto que me olhem com cara de coitada
por ter de cobrir a cabeça em meu país. Ocidentais não entendem que
temos problemas mais graves, como desemprego e temas políticos."
Tanto Parissa como Setareh, a piloto de avião, dizem que o véu restringe
o assédio. "Na época do xá, homens mexiam com as mulheres nas ruas ou
no transporte público, assobiando ou passando a mão. Há que reconhecer
que isso é raro hoje", diz a empresária.
RESPALDO Mudar o status legal da mulher exigiria respaldo
concomitante de três das instâncias mais conservadoras do regime: o
Poder Judiciário, o Parlamento e o Conselho de Guardiães da Revolução
(grupo de 12 fiscais ideológicos). A julgar pela crescente pressão
interna, a lei não mudará tão cedo.
A estudante e ativista pelos direitos da mulher Maryam Shafipour, 29,
foi condenada no início de março a sete anos de prisão por "propaganda
contra o Estado". Maryam tem problemas de circulação, e sua saúde vem
piorando na cadeia, segundo relato de parentes ao site reformista
Kaleme.
O caso se parece ao da feminista Bahareh Hedayat, 32, presa desde 2010
pelo mesmo pretexto. O Judiciário mantém-se indiferente à campanha pela
libertação das ativistas que buscam direitos iguais.
O cerco vai muito além da luta feminista. Execuções dispararam desde o
fim do ano passado. Jornalistas voltaram a ser perseguidos. Presos
políticos em liberdade condicional retornaram às celas.
A guinada é vista como demonstração de força dos inimigos de Rowhani no
fragmentado tabuleiro da teocracia iraniana. Obrigados a engolir as
concessões do presidente ao Ocidente na área nuclear, os
ultraconservadores, influentes e numerosos, manobram para deixar claro
quem manda em casa --inclusive na questão feminina.
Enquanto seus subordinados se digladiam, o aiatolá Ali Khamenei, chefe
absoluto da teocracia iraniana, cultiva a ambiguidade. Mas, no discurso
do Ano Novo persa, na semana passada, Khamenei disse que "cultura é mais
importante que economia". Em aparente sinal de apoio às facções
contrárias à liberalização da sociedade, ele pediu às autoridades que
combatam "brechas culturais perigosas".
A feminista Tahmasebi reconhece as limitações de Rowhani. Mas aposta que
o renascimento da sociedade civil pós-Ahmadinejad poderia criar um
ambiente favorável a mudanças. "Se Rowhani aliviar a pressão do aparato
de segurança sobre a população, aspirações das mulheres ressurgirão
naturalmente. É compatível com o islã, basta interpretação mais
progressista."
Aos obstáculos legais, soma-se uma resistência cultural machista, tão
difusa quanto profunda, que se manifesta de incontáveis formas.
Mulheres são as maiores vítimas da crise econômica dos últimos anos,
decorrente das sanções ao programa nuclear e das políticas populistas de
Ahmadinejad, que esvaziaram cofres públicos e acirraram a inflação. O
desemprego feminino supera 20%, mais que o dobro do masculino. Por uma
regra não dita, homens quase sempre recebem salários mais altos.
"Pelo fato de eu ser mulher, meus clientes querem pagar metade", diz a
advogada Elahe J., 37. "O modelo patriarcal está no sangue dos homens
iranianos."
Apesar da ausência de estatísticas a esse respeito, várias das
entrevistadas para esta reportagem dizem ter notado que a violência
contra a mulher está em alta.
M.J., a tradutora, culpa as mães, que "mimam demais os meninos". Ela
conta ter sido seduzida por um rapaz moderno e viajado, que terminou o
flerte ao descobrir que ela havia tido uma vida amorosa antes dele. "Ele
me disse que eu era independente demais."
A secretária Mehri R., 27, casada, diz falar em nome de todas as
iranianas: "Muitas de nós se destacam na sociedade e parecem ter o mesmo
espaço que os homens. Mas, quando você ouve segredos íntimos dessas
vencedoras, percebe que, no fundo, todas sofrem na sua condição de
mulher".
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