Indignada, a estudante de direito islâmico contou à sua família sobre
as práticas supersticiosas que tinha visto em um santuário histórico em
Cabul. Naquele dia de março, ela encontrara mulás vendendo amuletos e
visitantes convencidos de que as orações oferecidas no santuário se
tornariam realidade.
Durante o jantar com a família, a estudante de 27 anos chamada Farkhunda
prometeu voltar e se manifestar contra o que considerou um
comportamento supersticioso e anti-islâmico. Essa decisão -e o que a
aguardava no santuário- causou convulsão em Cabul.
Quando ela voltou para lá e começou a criticar as pessoas, um
funcionário do santuário revidou com uma acusação perigosa: aquela
mulher havia queimado o Alcorão, gritou ele.
Um bando esparso logo se tornou uma multidão, e homens a insultaram,
espancaram e colocaram fogo em seu corpo. O linchamento foi defendido
pelas autoridades.
Mais ou menos uma semana depois, porém, a verdade veio à tona, e
Farkhunda virou uma mártir -uma mulher defensora da religião que se
aventurou em um santuário para pregar o islã e foi atacada por homens
ignorantes.
"Farkhunda foi uma verdadeira muçulmana, uma heroína religiosa", disse
Shahla Farid, professora na Universidade de Cabul e membro de uma
comissão nomeada pelo presidente afegão para investigar a morte de
Farkhunda.
"Aqui uma mulher desafiou um homem e defendeu o islã."
O funcionário do santuário que a acusou falsamente está preso, assim
como cerca de 25 homens suspeitos de participar de sua morte, que foi
registrada em diversos vídeos de telefone celular.
Cartazes mostrando o rosto de Farkhunda enfeitam o local onde ela foi morta.
Sua família, que primeiro foi instruída a fugir da capital para sua
própria segurança, orgulhosamente adotou o nome dela como sobrenome.
O Ministério de Assuntos Religiosos do país prometeu livrar os santuários de adivinhos e vendedores de amuletos.
Apesar de Farkhunda ter obtido o reconhecimento após sua morte, é
revelador o fato de que, em vida, ela foi silenciada quando se
manifestou. Após mais de uma década de esforços para melhorar a situação
das mulheres afegãs, a violência contra elas ocorre impunemente em
grande parte do país.
Para algumas mulheres em Cabul, o desespero e o terror que elas sentiram
ao ver no Facebook vídeos do linchamento deram lugar a uma esperança
cautelosa.
"Ela melhorou a situação das mulheres no islã e em nossa comunidade",
disse Farid. "Acredito que Farkhunda deu mais esperança a mais
mulheres."
Mas Farid admitiu que suas alunas estavam menos otimistas.
Ao ter início o novo ano escolar, apenas duas das 30 alunas matriculadas
apareceram. Então Farid soube que as estudantes estavam com medo de
estar em público depois de ver como a multidão se uniu rapidamente
contra Farkhunda. "Como posso me sentar aqui na classe com meninos?
Tenho medo deles", teria dito uma das estudantes a Farid.
Algumas mulheres afirmam que ressaltar a justificativa de Farkhunda na
morte, em vez de sua vitimização em vida, é não ver o ponto principal.
"Isso só aconteceu porque Farkhunda era uma mulher", disse Fawzia Koofi, também da comissão de inquérito presidencial.
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