Um vídeo soturno circula entre agricultores nas planícies quentes do
grande Estado indiano de Maharashtra, passando de um celular a outro.
O vídeo mostra um homem com seus dois touros em uma feira de gado. Ele
grita que os touros, seus animais de tração, estão velhos, não conseguem
mais trabalhar, e que suas economias parcas quase acabaram.
Ele precisa vender os animais, mas nenhum dos compradores usuais -os
intermediários hindus que vendem os touros a muçulmanos para serem
abatidos-está comprando. Sem o dinheiro dos touros velhos, ele diz que
não terá como comprar animais novos. "Como vou poder continuar a
trabalhar na terra?", grita o homem. "Ou será que eu devia simplesmente
me enforcar?"
Não parece uma ameaça vazia. Essa região da Índia ganhou notoriedade
internacional pelos suicídios: desde 2011, mais ou menos quatro
agricultores dali se suicidam por dia, em média.
Os fracassos das safras são frequentes. Os agricultores contraem
empréstimos com vencimento anual, e muitos deles pagam os empréstimos em
parte com a venda de touros que já passaram da idade útil. Embora sejam
em sua maioria hindus, que veneram a vaca como mãe altruísta, gentil e
sagrada, esses camponeses não se importam com o que é feito dos touros,
que enxergam em termos mais práticos, como uma apólice de seguro.
Essa apólice, no entanto, perdeu valor em outubro, quando o partido
nacionalista hindu Bharatiya Janata, o BJP, ganhou as eleições em
Maharashtra, o Estado que inclui Mumbai.
Em março, o partido aprovou uma legislação que estava parada havia muito
tempo -a Lei (Emenda) de Preservação Animal de Maharashtra. A norma
proíbe o abate da "prole de vacas" e criminaliza a venda ou até posse de
carne bovina, que pode ser punida com até cinco anos de prisão.
A lei acabou com a venda de gado e carne bovina, fonte de subsistência
de mais de 1 milhão de moradores de Maharashtra de todas as religiões,
segundo representantes sindicais.
As pessoas de fora da Índia podem se surpreender com a simples
existência de um setor de venda de carne bovina no país. Aproximadamente
80% do 1,25 bilhão de habitantes da Índia se dizem hindus, um terço
pratica algum grau de vegetarianismo e, segundo a ONU, o índice indiano
de consumo de carne é o mais baixo do mundo.
Porém, a Índia também possui o maior "estoque bovino" do mundo, com mais
de 300 milhões de cabeças de gado bovino, incluindo búfalos. A carne de
búfalo é o produto de exportação agrícola mais valioso do país.
Muçulmanos, dalits, cristãos e alguns hindus consomem carne bovina.
Antes da proibição, era comum em Mumbai encontrar barracas vendendo
espetinhos de carne e restaurantes que serviam bifes ou cozidos de
carne.
Antes da proibição, o mercado de gado em Savda fervilhava de negociantes
comprando touros. Quando o camponês Bahundas Bhaviskar, 38, chegou ao
mercado, em abril, já tinha passado 15 dias indo a mais de meia dúzia de
outras feiras com seus touros e ainda não tinha conseguido vendê-los.
Cada vez que transportava seus animais a um mercado diferente, isso lhe
custava 1.600 rúpias, cerca de US$ 25, e suas economias estavam sumindo.
Bhaviskar esperava usar o dinheiro da venda dos touros para ajudar a
saldar os empréstimos que contraíra.
"Se eu não puder saldar minha dívida, vou ter que emprestar mais, e depois mais..."
A proibição da carne bovina foi ratificada pela Alta Corte de Bombaim em
abril. Os consumidores de carne bovina podem adaptar sua dieta, mas a
derrota legal foi avassaladora para a comunidade qureshi de Maharashtra,
que tem centenas de milhares de membros. No quebra-cabeça que é o
sistema indiano de castas, os qureshi, que são muçulmanos, formam a peça
responsável pelo abate de gado. Quase todos os membros da comunidade
adotam o sobrenome Qureshi, de modo que muitos são conhecidos apenas por
seu primeiro nome.
Badshah tem 50 anos e dois filhos. Antes da lei, ele vendia miúdos
bovinos a restaurantes locais. Desde que a proibição entrou em vigor,
ele não ganhou mais dinheiro. "Passei minha vida toda fazendo o mesmo
trabalho. Proibir a carne bovina é como proibir os qureshis."
Badshah e centenas de outros qureshis trabalham no matadouro Deonar, em
Mumbai. Quando o matadouro foi aberto, em 1971, era o maior da Ásia e
tinha máquinas das mais modernas. No entanto, as máquinas se
deterioraram.
Hoje o abate dos animais e o processamento da carne nos 16 espaços
cavernosos do matadouro são feitos por qureshis, usando facas de
açougueiro e sua própria força muscular.
O vice-gerente geral do matadouro disse que, antes da proibição, 80% dos
animais abatidos ali eram touros -uma média de 450 por dia. Os outros
20% eram búfalos. Os qureshis que trabalham no matadouro estão tendo
dificuldade de penetrar no ramo da carne de búfalo, que é controlado por
empresas grandes, voltadas à exportação. Muitos deles estão vivendo
precariamente.
Qadar contraiu um empréstimo a juros altos, dando o título de sua casa
como garantia. Sharif, que tem 29 anos e trabalhou no matadouro Deonar
desde os 12, agora está dirigindo um riquixá motorizado, sem ter
carteira de habilitação. Desde que o trabalho do matadouro diminuiu, ele
só está ganhando o suficiente para pagar a escola de dois de seus
quatro filhos. Ramzan, que é açougueiro, ainda trabalha num açougue
pequeno, onde é o único funcionário que restou. "Antes vendíamos 250
quilos de carne por dia", comentou. "Agora que é só carne de búfalo,
caiu para 40 quilos."
Mohammed Ali Qureshi, diretor da Associação Suburbana de Bombaim de
Vendedores de Carne Bovina, disse que não tem solução a propor a quem
agora está sobrevivendo com dificuldade.
Embora não tenha sido feita nenhuma pesquisa oficial, ele estimou que
500 mil pessoas ou mais, boa parte das quais são qureshis, perderam seus
empregos com a proibição da carne bovina.
Milind Ranade é organizador de um dos sindicatos de trabalhadores mais
antigos e respeitados da Índia, o Sarva Shramik Sangh. Ele destacou que,
embora a maioria dos que perderam seus empregos possa ser muçulmana, a
proibição pode ter afetado a subsistência de um número ainda maior de
hindus.
"O BJP quer que esta questão seja vista como uma questão sectária,
porque isso agrada à sua base eleitoral. E é claro que a proibição é uma
maneira de punir os muçulmanos", disse Ranade. "Mas como ficam os
milhões de agricultores hindus para quem a venda de gado era uma fonte
crucial de renda?"
A proibição entrou em vigor em um momento em que o ritmo da vida na zona
rural de Maharashtra passa por mudanças sutis que tornam os touros
menos necessários nas fazendas. Os tratores estão ficando mais
acessíveis, e muitos agricultores compraram tratores ou os alugam, o que
lhes custa menos que alimentar touros durante a estação do plantio.
O agricultor Sanjay Tupkar mantém seis touros. Ele gasta US$ 80 por mês
para alimentar cada um e pagar um garoto para cuidar deles. Enquanto os
touros estão saudáveis, a despesa se justifica, mas, quando eles se
tornam menos produtivos, vendê-los é a única opção prudente. Agora,
porém, ele não sabe bem o que fazer.
Seu sobrinho, Ravikant Tupkar, lidera uma associação de agricultores e
admira a desobediência civil. "Estamos dizendo às pessoas que um dia
destes vamos nos unir e soltar os touros velhos diante da sede do
governo", falou. "Eles poderão perambular pelas ruas como se fossem
cachorros."
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