sábado, 18 de julho de 2015


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Se a felicidade se mede pelos bens materiais modernos, então o ex-criador de iaques e ovelhas Gere, 59, que vive na província chinesa de Qinghai, deveria estar contente.
Desde que o governo chinês o obrigou a vender seus animais e a se mudar para uma casa de concreto em Madoi, no planalto tibetano, há dois anos, Gere e sua família adquiriram uma máquina de lavar roupa, uma geladeira e um televisor a cores.
No entanto, Gere -que, como muitos tibetanos, usa apenas um nome-lamenta muitas coisas.
Como centenas de milhares de pastores nômades que nos últimos dez anos foram assentados em vilas, ele está desempregado, profundamente endividado e depende de subsídios governamentais minguantes para comprar o leite, a carne e a lã que antes obtinha de seu próprio rebanho."Não vamos passar fome, mas perdemos o modo de vida que nossos ancestrais seguiram por milhares de anos", disse.
O governo chinês está na etapa final de uma campanha de 15 anos que visou assentar os milhões de nômades que antes se deslocavam pelos imensos territórios de fronteira do país. Pequim diz que até o final do ano terá transferido 1,2 milhão de pastores nômades ainda restantes para cidades, com acesso a escolas, eletricidade e atendimento de saúde.
Segundo a mídia oficial, os ex-nômades estão gratos por terem sido salvos de um modo de vida primitivo. "Em apenas cinco anos, pastores de Qinghai que durante gerações vagaram em busca de água e pastagens transcenderam a distância de um milênio e fizeram avanços enormes em direção à modernidade", disse o periódico estatal "Diário dos Agricultores".
No entanto, pesquisadores chineses e estrangeiros dizem que as bases científicas do projeto são duvidosas. Antropólogos que estudaram os centros de assentamento construídos pelo governo documentam desemprego crônico, alcoolismo e a perda de tradições milenares.
O governo gastou US$ 3,45 bilhões no assentamento mais recente. Apesar disso, a maioria dos nômades não está se saindo bem. Os habitantes de cidades como Pequim e Xangai ganham em média duas vezes mais que os do Tibete e de Xinjiang.
Defensores dos direitos humanos dizem que os assentamentos muitas vezes são realizados por meio de coerção.
Na Mongólia Interior e no Tibete, há protestos quase semanais de pastores assentados. A repressão contra eles é cada vez mais dura. "A ideia de que os pastores destroem as pradarias é apenas uma desculpa esfarrapada para deslocar pessoas que o governo chinês considera que têm um modo de vida atrasado", disse Enghebatu Togochog, do Centro de Informações sobre Direitos Humanos dos Mongóis do Sul, sediado em Nova York.
Em Xilinhot, área da Mongólia Interior rica em carvão, nômades assentados, muitos deles analfabetos, contam que foram induzidos a assinar contratos que mal entendiam. Um deles é Tsokhochir, 63, um dos primeiros a se mudar com sua família para o vilarejo de Xin Kang, à sombra de duas usinas elétricas e uma siderúrgica. Ele contou que, em 2003, as autoridades o obrigaram a vender seus 20 cavalos e 300 ovelhas e lhe deram empréstimos para comprar duas vacas leiteiras. De lá para cá, seu rebanho bovino cresceu e hoje tem 13 animais. Porém, Tsokhochir diz que, devido à queda no preço do leite e ao alto preço da ração, ele mal consegue fechar as contas.
Nem todos estão insatisfeitos. O vendedor de ovelhas Bater, 34, vive em um dos novos prédios de vários andares em Xilinhot. Todo mês, ele percorre 600 quilômetros de carro em rodovias asfaltadas para falar com fregueses em Pequim. "Antigamente, demorava um dia para chegar de minha cidade natal a Xilinhot", comentou. "Hoje faço esse trajeto em 40 minutos." Fluente em mandarim, Bater, que fez ensino superior, criticou os vizinhos que se negam a aderir à nova economia.
Especialistas dizem que os assentamentos são feitos com outra finalidade: aumentar o controle do Partido Comunista sobre pessoas que sempre viveram nas margens da sociedade chinesa.
Um mapa revela a razão do interesse eterno do Partido Comunista em domar os pastores. As áreas de pastoreio pelas quais eles se deslocam cobrem mais de 40% do território chinês, desde Xinjiang, no extremo oeste, até as extensas estepes da Mongólia Interior, ao norte. Essas terras foram tradicionalmente habitadas por uigures, cazaques, manchus e outras minorias étnicas que rejeitam o controle de Pequim.
Para a maioria chinesa da etnia han, os habitantes das pradarias provocam fascínio e medo. As mais importantes fases de subjugação da China por forças externas se deveram a invasores nômades, incluindo Kublai Khan, cujos guerreiros mongóis governaram a China por quase um século, a partir de 1271.
"Essas regiões sempre foram difíceis de ser governadas por pessoas de fora. Sempre foram vistas como regiões de banditismo ou guerra de guerrilhas", disse Charlene W. Makley, do Reed College.
Gere diz que zombou da alegação do governo de que seus 160 iaques e 400 ovelhas fossem destrutivos, mas que não teve outra opção senão vendê-los. "Só um tolo desobedece o governo", disse. "Pastorear nossos animais não foi problema durante milhares de anos, mas, agora, de repente, dizem que é."
Os pastores reassentados pagam em média 30% do custo de suas casas construídas pelo governo. Gere disse que o estipêndio anual de US$ 965 recebido por sua família -por um prazo previsto de cinco anos- foi US$ 300 a menos que o prometido. "Depois que o subsídio acabar, não sei o que vamos fazer", disse.
Desde 2009, mais de 140 tibetanos, dos quais 24 nômades, imolaram-se para protestar contra as políticas de ingerência do governo chinês, entre elas as restrições impostas a práticas religiosas e a extração mineral em terras ambientalmente delicadas. Nos últimos anos, autoridades da Mongólia Interior prenderam dezenas de antigos pastores. Neste ano, habitantes do vilarejo de Xin Kang entraram em choque com a polícia.
Cientistas como Li Wenjun, professora de gestão ambiental na Universidade de Pequim, dizem que o assentamento de grande número de pastores em cidades exacerba a pobreza e agrava a escassez de água.
A professora se negou a ser entrevistada, citando questões políticas. Porém, em estudos publicados, ela diz que as práticas de pastoreio tradicionais beneficiam a terra. "O sistema de produção alimentar como a pastorícia nômade, que foi sustentável durante séculos, consumindo muito pouca água, é a melhor opção", escreveu em artigo recente.
Para atrair turistas, Gere montou uma tenda de couro de iaque, como um dia foi sua casa, ao lado de uma estrada. "Vamos servir chá e carne seca de iaque", disse, esperançoso. Ele mexeu com um molho de chaves amarrado a seu cinto. "Antigamente andávamos com facões. Hoje temos que carregar chaves."

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