Se a felicidade se mede pelos bens materiais modernos, então o
ex-criador de iaques e ovelhas Gere, 59, que vive na província chinesa
de Qinghai, deveria estar contente.
Desde que o governo chinês o obrigou a vender seus animais e a se mudar
para uma casa de concreto em Madoi, no planalto tibetano, há dois anos,
Gere e sua família adquiriram uma máquina de lavar roupa, uma geladeira e
um televisor a cores.
No entanto, Gere -que, como muitos tibetanos, usa apenas um nome-lamenta muitas coisas.
Como centenas de milhares de pastores nômades que nos últimos dez anos
foram assentados em vilas, ele está desempregado, profundamente
endividado e depende de subsídios governamentais minguantes para comprar
o leite, a carne e a lã que antes obtinha de seu próprio rebanho."Não
vamos passar fome, mas perdemos o modo de vida que nossos ancestrais
seguiram por milhares de anos", disse.
O governo chinês está na etapa final de uma campanha de 15 anos que
visou assentar os milhões de nômades que antes se deslocavam pelos
imensos territórios de fronteira do país. Pequim diz que até o final do
ano terá transferido 1,2 milhão de pastores nômades ainda restantes para
cidades, com acesso a escolas, eletricidade e atendimento de saúde.
Segundo a mídia oficial, os ex-nômades estão gratos por terem sido
salvos de um modo de vida primitivo. "Em apenas cinco anos, pastores de
Qinghai que durante gerações vagaram em busca de água e pastagens
transcenderam a distância de um milênio e fizeram avanços enormes em
direção à modernidade", disse o periódico estatal "Diário dos
Agricultores".
No entanto, pesquisadores chineses e estrangeiros dizem que as bases
científicas do projeto são duvidosas. Antropólogos que estudaram os
centros de assentamento construídos pelo governo documentam desemprego
crônico, alcoolismo e a perda de tradições milenares.
O governo gastou US$ 3,45 bilhões no assentamento mais recente. Apesar
disso, a maioria dos nômades não está se saindo bem. Os habitantes de
cidades como Pequim e Xangai ganham em média duas vezes mais que os do
Tibete e de Xinjiang.
Defensores dos direitos humanos dizem que os assentamentos muitas vezes são realizados por meio de coerção.
Na Mongólia Interior e no Tibete, há protestos quase semanais de
pastores assentados. A repressão contra eles é cada vez mais dura. "A
ideia de que os pastores destroem as pradarias é apenas uma desculpa
esfarrapada para deslocar pessoas que o governo chinês considera que têm
um modo de vida atrasado", disse Enghebatu Togochog, do Centro de
Informações sobre Direitos Humanos dos Mongóis do Sul, sediado em Nova
York.
Em Xilinhot, área da Mongólia Interior rica em carvão, nômades
assentados, muitos deles analfabetos, contam que foram induzidos a
assinar contratos que mal entendiam. Um deles é Tsokhochir, 63, um dos
primeiros a se mudar com sua família para o vilarejo de Xin Kang, à
sombra de duas usinas elétricas e uma siderúrgica. Ele contou que, em
2003, as autoridades o obrigaram a vender seus 20 cavalos e 300 ovelhas e
lhe deram empréstimos para comprar duas vacas leiteiras. De lá para cá,
seu rebanho bovino cresceu e hoje tem 13 animais. Porém, Tsokhochir diz
que, devido à queda no preço do leite e ao alto preço da ração, ele mal
consegue fechar as contas.
Nem todos estão insatisfeitos. O vendedor de ovelhas Bater, 34, vive em
um dos novos prédios de vários andares em Xilinhot. Todo mês, ele
percorre 600 quilômetros de carro em rodovias asfaltadas para falar com
fregueses em Pequim. "Antigamente, demorava um dia para chegar de minha
cidade natal a Xilinhot", comentou. "Hoje faço esse trajeto em 40
minutos." Fluente em mandarim, Bater, que fez ensino superior, criticou
os vizinhos que se negam a aderir à nova economia.
Especialistas dizem que os assentamentos são feitos com outra
finalidade: aumentar o controle do Partido Comunista sobre pessoas que
sempre viveram nas margens da sociedade chinesa.
Um mapa revela a razão do interesse eterno do Partido Comunista em domar
os pastores. As áreas de pastoreio pelas quais eles se deslocam cobrem
mais de 40% do território chinês, desde Xinjiang, no extremo oeste, até
as extensas estepes da Mongólia Interior, ao norte. Essas terras foram
tradicionalmente habitadas por uigures, cazaques, manchus e outras
minorias étnicas que rejeitam o controle de Pequim.
Para a maioria chinesa da etnia han, os habitantes das pradarias
provocam fascínio e medo. As mais importantes fases de subjugação da
China por forças externas se deveram a invasores nômades, incluindo
Kublai Khan, cujos guerreiros mongóis governaram a China por quase um
século, a partir de 1271.
"Essas regiões sempre foram difíceis de ser governadas por pessoas de
fora. Sempre foram vistas como regiões de banditismo ou guerra de
guerrilhas", disse Charlene W. Makley, do Reed College.
Gere diz que zombou da alegação do governo de que seus 160 iaques e 400
ovelhas fossem destrutivos, mas que não teve outra opção senão
vendê-los. "Só um tolo desobedece o governo", disse. "Pastorear nossos
animais não foi problema durante milhares de anos, mas, agora, de
repente, dizem que é."
Os pastores reassentados pagam em média 30% do custo de suas casas
construídas pelo governo. Gere disse que o estipêndio anual de US$ 965
recebido por sua família -por um prazo previsto de cinco anos- foi US$
300 a menos que o prometido. "Depois que o subsídio acabar, não sei o
que vamos fazer", disse.
Desde 2009, mais de 140 tibetanos, dos quais 24 nômades, imolaram-se
para protestar contra as políticas de ingerência do governo chinês,
entre elas as restrições impostas a práticas religiosas e a extração
mineral em terras ambientalmente delicadas. Nos últimos anos,
autoridades da Mongólia Interior prenderam dezenas de antigos pastores.
Neste ano, habitantes do vilarejo de Xin Kang entraram em choque com a
polícia.
Cientistas como Li Wenjun, professora de gestão ambiental na
Universidade de Pequim, dizem que o assentamento de grande número de
pastores em cidades exacerba a pobreza e agrava a escassez de água.
A professora se negou a ser entrevistada, citando questões políticas.
Porém, em estudos publicados, ela diz que as práticas de pastoreio
tradicionais beneficiam a terra. "O sistema de produção alimentar como a
pastorícia nômade, que foi sustentável durante séculos, consumindo
muito pouca água, é a melhor opção", escreveu em artigo recente.
Para atrair turistas, Gere montou uma tenda de couro de iaque, como um
dia foi sua casa, ao lado de uma estrada. "Vamos servir chá e carne seca
de iaque", disse, esperançoso. Ele mexeu com um molho de chaves
amarrado a seu cinto. "Antigamente andávamos com facões. Hoje temos que
carregar chaves."
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