Nos anos 1950, a Nova Vila de Caoyang, localizada nos arredores de
Xangai, tornou-se um dos primeiros assentamentos modelo da China para os
heroicos trabalhadores socialistas. Milhares vieram habitar suas casas
simples e semelhantes para fazer funcionar a indústria têxtil de
propriedade estatal. Hoje, erguendo-se das antes modestas ruas, há um
edifício elegante destinado a um novo tipo de cidadão modelo: o
consumidor.
O Global Harbor está entre os maiores shoppings do mundo, com área
construída equivalente a quase 70 campos de futebol. Há uma mistura de
falsa arquitetura europeia e uma seleção de lojas tipicamente asiática.
Sob as altas redomas de vidro e murais imitando o Renascimento temos um
café inspirado em Hello Kitty, meia dúzia de restaurantes oferecendo
macarrão, joalherias repletas de ouro e um teatro usado para concursos
de karaokê.
Não é exagero dizer que as esperanças para a economia da China se apoiam
nas falsas colunas gregas do Global Harbor. Com as décadas de boom no
investimento chegando a um fim abrupto, o país precisa que o consumo
ganhe força para se tornar um novo fator de impulso ao crescimento. Este
reequilíbrio é comentado há anos, mas se tornou mais urgente com o
aprofundamento do declínio industrial chinês. O frenesi nacional de
construção civil está perdendo força, as fábricas têm capacidade de
sobra e a indústria metalúrgica do norte está à beira da recessão. Nessa
semana, um índice de manufatura apontou seu valor mensal mais baixo em
seis anos - o sétimo recuo seguido.
Em meio ao pessimismo extremo em relação à economia chinesa nos meses
mais recentes, é tentador concluir que o reequilíbrio fracassou. Basta
olhar para o mercado de carros, que costuma ser bom indicador da demanda
do consumidor. As vendas de automóveis tiveram queda de 3,4% em agosto,
em relação ao mesmo período de 2014, no terceiro declínio mensal
seguido. Mas outras formas de consumo tiveram alta. Uma recuperação das
propriedades estimulou a demanda por móveis, eletrônicos e materiais
para reforma, com as vendas de agosto registrando alta de 17% frente ao
ano anterior. Das joias aos remédios da medicina tradicional chinesa, as
compras ganharam força nos últimos meses.
Sofisticação. As vendas de smartphones recuaram em volume, mas seguem
aumentando em valor, conforme os consumidores procuram modelos mais
caros. Empresas atingidas pela campanha de combate à corrupção durante o
governo do presidente Xi Jinping estão aprendendo a prosperar apesar
das novas regulamentações. O lucro das destilarias, em queda no ano
passado, apresentou recuperação, impulsionado por marcas mais
acessíveis, e não pelas garrafas de valor exorbitante antes usadas para
subornar funcionários do governo.
Em geral, as vendas no varejo chinês aumentaram 10,5% em termos reais
este ano, bem acima do crescimento econômico (anunciado oficialmente
como 7%, mas mais próximo de 6%, segundo muitos analistas). Como sempre,
dúvidas pairam em torno dos dados econômicos chineses, mas, neste caso,
talvez os números do varejo sejam ainda maiores. O especialista em
estatísticas chinesas Nicholas Lardy, do Instituto Peterson de Economia
Internacional, destaca que os números do varejo não incluem serviços,
uma séria omissão, pois levantamentos indicam que os serviços
correspondem a até dois quintos dos gastos do consumidor chinês.
Tudo isso indica que o consumo está absorvendo ao menos parte do vácuo
deixado pelo declínio industrial. A principal razão da resiliência dos
compradores chineses é o constante aumento na renda. Os salários para
trabalhadores migrantes tiveram alta de 10% no segundo trimestre, em
relação ao ano anterior, superando a média nacional de 7%. Como os
trabalhadores de renda mais baixa tendem a gastar mais de seu salário do
que os ricos, isso deu ao consumo uma força adicional.
Uma das preocupações envolve a possibilidade de o crescimento na renda
prosseguir, apesar das dificuldades da indústria chinesa. Algumas
fábricas estão cortando empregos. Mas os serviços correspondem a uma
parcela da economia maior do que a indústria, empregam mais pessoas e
continuam crescendo bem.
Bônus demográfico. Também há fatores estruturais influenciando este
quadro. Com a população chinesa em idade economicamente ativa agora em
declínio, a mão de obra está se tornando mais escassa e os trabalhadores
exigem salários mais altos. A proporção da renda poupada pelos lares
chineses - quase 30%, uma das mais altas do mundo - também começa a cair
conforme a população envelhece e os idosos recorrem a saques da riqueza
acumulada. A fatia do consumo dos lares no PIB caiu para 35,9% em 2010,
baixo até para os padrões asiáticos, mas tem se recuperado desde então.
Uma mudança de gerações ajudou no processo. Para os chineses mais
velhos, a experiência da privação na época de Mao inibe gastos. Numa
tarde de domingo no Global Harbor, as pessoas segurando sacolas e
formando filas nos restaurantes têm, em sua maioria, entre 20 e 30 anos.
"Nossos pais são muito cuidadosos, mas queremos levar uma vida mais
equilibrada", diz Lulu Yu, assistente jurídica que foi ao cinema com o
namorado para assistir a um filme. Ela é o retrato de uma consumidora
madura. Com o corte de cabelo da moda e lentes de contato para fazer os
olhos parecerem maiores, ela traz pendurado no braço um par de sapatos
de salto alto, compra que ela fez impulsivamente a caminho do cinema.
Isso significa que os consumidores chineses estão prestes a se tornar o
motor da economia global, como seus famosos equivalentes americanos? Em
certos aspectos, isso já ocorreu. O número de chineses viajando para o
exterior teve alta de 19,5% no ano passado, chegando a 107 milhões. Além
disso, os turistas chineses gastam mais do que os outros, comprando
artigos que são mais baratos no exterior. Tudo isso faz da China a maior
fonte de dólares para o turismo. Na Coreia do Sul e na Tailândia, a
alta nos gastos por parte de turistas chineses entre 2011 e 2014
compensou a queda nas exportações para a China ao longo do mesmo
período, de acordo com a firma de pesquisas Capital Economics.
Mas, mesmo que o consumo chinês conserve seu vigor, ele não servirá de
cura para o anêmico crescimento global. Os países exportadores de
commodities cuja sorte dependeu da China na década mais recente devem
sair perdendo, pois produzem pouco em termos de bens de consumo que
interessem aos compradores chineses. De fato, para o mundo exterior como
um todo, a mudança chinesa do investimento para o consumo vai subtrair
da demanda, já que a fabricação de aço exige mais importações do que
manter os estoques de shoppings como o Global Harbor.
Independência. O componente importado do consumo chinês está 11 pontos
porcentuais abaixo daquele correspondente ao investimento, de acordo com
o banco Goldman Sachs. Um reequilíbrio de 1 trilhão de yuans (US$ 157
bilhões) do investimento para o consumo cortaria assim as importações
chinesas em cerca de 110 bilhões de yuans.
Essa relativa independência deve aumentar com o tempo. Um estudo
realizado pela consultoria Bain revelou que, das 26 categorias de bens
de consumo baratos, as marcas estrangeiras perderam mercado em 18 no ano
passado, incluindo cremes para a pele, leite, amaciante e pasta de
dente. Em produtos mais sofisticados, as empresas domésticas também
estão conquistando mais espaço em território antes dominado por
participantes internacionais.
As marcas chinesas de carros responderam por 41% das vendas neste ano,
com ganho de 3,5% em participação no mercado. O crescente consumo de
serviços, desde cirurgias cosméticas até jantares em restaurantes,
apenas acentua a vantagem doméstica, já que a maioria dos serviços é
prestada localmente. O boom no consumo chinês é real. Mas não podemos
contar com sua capacidade de sustentar a economia global.
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