Na
tentativa de transformar o Iraque de ditadura em democracia após a
invasão liderada pelos norte-americanos, em 2003, o Grande Aiatolá Ali
al-Sistani, maior autoridade espiritual para muitos dos muçulmanos
xiítas do mundo, se destacou como o grande defensor das eleições diretas
e da garantia de que os políticos, e não os clérigos, dirigissem o
país.
Ele moldou a relação entre religião e política aqui de uma forma
totalmente distinta da teocracia xiíta no Irã, onde outro aiatolá goza
do poder supremo.
Agora, por causa da preocupação com o poder cada vez maior do vizinho
e das milícias sob seu comando em meio a uma guerra sectária no próprio
país, Sistani fez uma de suas maiores intervenções na política nacional
para, segundo os especialistas, injetar força no Estado.
Há mais de dois meses ele vem dando instruções, através de um
representante, durante os sermões das sextas, ao primeiro-ministro
Haider al-Abadi, com ordens de punir autoridades corruptas, reformar o
Poder Judiciário e apoiar as forças de segurança nacionais em vez dos
grupos apoiados pelo Irã. De fato, o filho do aiatolá mantém contato
telefônico direto com o gabinete do governo, na tentativa de acelerar as
mudanças.
A intervenção recente provocou um novo questionamento entre os
líderes políticos e diplomatas em Bagdá: será que Sistani, com a
desculpa de mais uma vez auxiliar o país castigado pela crise, está na
verdade ensaiando uma mudança fundamental rumo ao regime clerical?
“Tem gente muito surpresa ao ver Sistani tão envolvido na política”,
diz um líder xiíta em Bagdá, que só concordou em falar se não tivesse
seu nome revelado porque não quer ser considerado um dos críticos ao
aiatolá.
“Na verdade, na prática, está fazendo o que Khamenei faz e o que
Khomeini fez”, afirma, referindo-se ao supremo líder do Irã, o Aiatolá
Ali Khamenei, e seu guia revolucionário, o Aiatolá Ruhollah Khomeini.
Aos 85 anos, a saúde de Sistani está fragilizada. Ele viaja
constantemente a Londres para tratamento médico e raramente é visto em
público. Apesar disso, faz questão de cumprimentar quem vai visitá-lo em
seu escritório, em Najaf, não muito longe do Santuário do Imã Ali, um
dos monumentos mais sagrados do Islamismo xiíta.
Como líder espiritual supremo do segmento, é ele que instrui os fiéis sobre como rezar, como se lavar e o que comer.
Apesar da influência, seu papel público no Iraque geralmente é
descrito como “paternal”, guiando a política de cima, intervindo em
tempos difíceis, mas, do contrário, mantendo-se distante das disputas de
governo.
Essa filosofia, conhecida aqui como a tradição “quietista”, é o que
difere o Iraque do Irã e Najaf da cidade santa do Irã, Qom. Faz parte
também da rivalidade histórica entre os dois centros antigos de erudição
xiíta.
Porém, em meio à atual crise que se abate sobre o país – da guerra
contra o Estado Islâmico à corrupção do governo e a ameaça que as
milícias apoiadas pelo Irã e seus líderes políticos representam a Abadi e
ao Estado iraquiano –, Sistani deu um novo passo.
“De uns meses para cá ele sentiu um grande perigo no cenário
político e de segurança. Achou que era seu dever patriótico agir”,
explica Ali Alaq, legislador xiíta em Bagdá.
Até agora, entretanto, esse desejo de reformas, embora aceito por
Abadi, resultou em pouco sucesso. O primeiro-ministro reduziu os
salários dos políticos e o número de seguranças, além de eliminar várias
posições nos altos escalões, mas ainda não promoveu esforços sérios
para acabar com a corrupção ou reformar o Judiciário.
No ano passado, fez uma convocação, prontamente atendida, para que os
jovens saíssem em combate ao Estado Islâmico – só que a fátua resultou
no surgimento de novas milícias e o crescimento das já existentes,
controladas pelo Irã, cuja influência só faz aumentar, pois os grupos
armados que controla se tornaram essenciais na luta contra os
militantes.
Segundo os especialistas, Sistani teme que essas milícias sejam uma
ameaça à unidade iraquiana, em parte porque muitos de seus líderes e
políticos a que são afiliados desafiam os esforços de reconciliação com
as minorias sunitas, considerados uma prioridade para o clérigo.
Os analistas ainda afirmam que, apesar dos temores, Sistani não se
opõe à atividade iraniana no Iraque. Mehdi Khalaji, membro do Instituto
Washington de Políticas do Oriente Próximo que estudou em Qom e já
escreveu sobre o aiatolá, disse que a principal preocupação do religioso
é a tensão entre sunitas e xiítas e o papel do Irã no reforço das
divisões sectárias de seu país.
Entretanto, ao tentar agir para diminuir essa influência, está apenas imitando o sistema do vizinho.
Um diplomata em Bagdá, referindo-se às cidades santas xiítas de onde
os políticos recebem instruções nos sermões das sextas-feiras, comentou:
“Da mesma forma que os líderes políticos iranianos se guiam por Qom,
toda semana nos voltamos para Karbala e Najaf.”
A questão é se a proeminência de Sistani na política será duradoura –
e se o público e os políticos desejam que esse papel de destaque no
governo continue a se expandir.
Em breve entrevista, o filho do aiatolá, Muhammed Ridha Ali, deu a entender que a intervenção não deve ser permanente.
“Talvez daqui a um ano ele se recolha novamente”, disse.
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