Tão provocante quanto a Mulher-Maravilha, mas de um modo totalmente diferente, Batina The Hidden (Batina, a Escondida), é uma personagem da série de sucesso em quadrinhos “The 99” (Os 99) que não apenas é uma garota muçulmana do Iêmen, mas uma cujo traje escolhido para o combate ao crime é uma burca.
“A maioria dos artigos sobre o Islã atualmente envolve terrorismo, de modo que esse era meu desafio: como redefinir isso? A imprensa não apenas reflete a realidade, mas pode ajudar a mudar o curso da realidade”, disse Naif Al Mutawa, criador de “The 99”, durante um discurso no Festival Internacional de Criatividade de Cannes no mês passado. “A ideia era reposicionar o Islã não apenas para o Ocidente, mas também para os próprios muçulmanos.”
“The 99” apresenta personagens inspirados no Islã, baseados nos 99 atributos de Alá, que descobrem pedras mágicas que liberam poderes como força sobre-humana, capacidade de ler mentes e teleportar. E, no verdadeiro estilo super-herói, eles usam seus poderes para combater os bandidos.
A série em quadrinhos, que começou a ser publicada em 2007 pela Teshkeel Media Group no Kuait, é a primeira do gênero no Oriente Médio voltada para um público internacional.
Os personagens podem ter nomes muçulmanos, mas eles representam origens diversas, como Hadya the Guide (Hadya, a Guia), uma GPS humana, que é de Londres, e Bari the Healer (Bari, o Curandeiro), da África do Sul.
Neste ano, a série em quadrinhos conseguiu distribuição em sua nona língua, o francês; um parque temático foi aberto no Kuait; e acordos com a DC Comics permitiram que Superman, Batman e uma Mulher-Maravilha plenamente vestida aparecessem em “The 99”. No início do ano que vem, uma série em desenho animado baseada nos quadrinhos passará a ser exibida na América do Norte, Oriente Médio, Norte da África, partes da Europa e da Ásia e, futuramente, na Austrália.
“Quando chegar à TV, ela contará com animação da mais alta qualidade”, disse Al Mutawa, um psicólogo clínico formado em Nova York e empreendedor, em Cannes.
A ideia do cruzamento cultural é uma com a qual Al Mutawa cresceu; na infância, seus pais muçulmanos árabes conservadores o enviaram por engano para um acampamento de verão culturalmente judaico em New Hampshire, em 1975. Ele só percebeu isso depois, mas continuou frequentando por uma década. Seus cinco filhos atualmente passam seus verões lá.
Após obter um Ph.D. em psicologia clínica pela Universidade de Long Island, em Nova York, e trabalhar com sobreviventes de tortura política no Bellevue Hospital, em Nova York, ele foi para uma faculdade de administração e negócios e obteve um MBA pela Universidade de Colúmbia.
Posteriormente, ele retornou ao Kuait e flertou com alguns empreendimentos de negócios até ter a ideia de lançar uma revista em quadrinhos com super-heróis inspirados no Islã. Em poucos meses, ele levantou US$ 7 milhões junto a 54 investidores em oito países. Hoje, o projeto conta com mais de US$ 40 milhões em financiamento e está expandindo para uma série de animação.
“O conceito dele tem o potencial de mudar o mundo”, disse Elliot Polak, fundador e criador da Textappeal, uma firma britânica que fornece consultoria de marketing e propaganda transcultural para empresas globais. “O dr. Al Mutawa está trabalhando em reformulação de marca, não de um produto ou serviço, mas do Islã.”
Seu trabalho está chamando atenção. Na Cúpula Presidencial de Empreendedorismo, em abril em Washington, o presidente Barack Obama citou Al Mutawa em um discurso promovendo o diálogo inter-religioso e iniciativas transculturais.
Mesmo assim, a estrada para o sucesso “não foi só rosas”, disse Al Mutawa em Cannes. “Ocorreu um milhão de reveses.”
Ele teve que defender suas ideias contra uma proibição potencial na Arábia Saudita e uma fatwa por sábios islâmicos na Indonésia. Dentre as 50 personagens femininas da série, Batina the Hidden é apenas um dentre cinco que usam lenço de cabeça.
Em uma cena de “Wham! Bam! Islam!”, do cineasta independente Isaac Solotaroff, um documentário sobre as dificuldades e triunfos de Al Mutawa nos últimos quatro anos que será exibido pelo canal “PBS” nos Estados Unidos em 13 de novembro, uma estudante universitária indonésia, vestindo hijab, pergunta por que a personagem Soora veste um top imodesto e deixa seu cabelo descoberto.
“Eu acredito que o propósito desta revista em quadrinhos é ser contracultural”, ela diz para Al Mutawa. “Você sabe que isso é errado, então por que insiste em fazer isso?”
Al Mutawa responde contando para ela sobre um incêndio em uma escola em Riad, há dois anos, quando as meninas saíram correndo da escola sem usar lenço de cabeça, e então a polícia da moralidade as enviou de volta à escola, para que os bombeiros não as vissem vestidas de modo imodesto. As meninas morreram queimadas na escola. “A pergunta aqui é, o Islã é medido pelo comportamento, que qualquer um pode fingir rezando ou usando lenço de cabeça, ou é medido pelos valores e pela fé?” ele pergunta.
Ele então enfatiza que é perigoso dar um pequeno percentual de pessoas o controle para definir o que é e o que não é o Islã. “Isso é o que nos levará ao inferno em uma cesta, e será nossa culpa se isso acontecer, e de mais ninguém”, ele diz aos estudantes universitários no filme.
Em outra cena, Al Mutawa está na redação da revista “Sabili” na Indonésia. Os cartazes que decoram a parede dizem “Não Tema a Al Qaeda”. Enquanto Al Mutawa explica como “The 99” é inspirado no Islã, um dos sábios religiosos bate a mão na mesa e diz: “Você não pode reescrever o Islã!”
Em resposta, Al Mutawa explica que as mesmas virtudes no Islã são compartilhadas por outras religiões, e que ele não está tentando reescrever nenhuma religião.
“O dr. Al Mutawa estava no controle e se manteve perfeitamente fluente em cada um desses ambientes”, disse Solotaroff em uma entrevista nesta semana. “Ele é alguém que já passou por múltiplos mundos em toda sua vida, de modo que, como resultado, não está em seu DNA tomar partido.”
Em Cannes, Al Mutawa foi cuidadoso em acentuar que sua série em quadrinhos não é puramente islâmica e nem didática por natureza, mas sim um conceito inspirado pela religião. Ele apontou para a forma como outras culturas desenvolveram obras seculares baseadas em arquétipos religiosos –até mesmo o Superman e o Batman usam elementos narrativos extraídos da Bíblia, ele disse– mas isso ainda não ocorreu no mundo muçulmano.
“Até que ocorra, nós não seremos capazes de oferecer opiniões divergentes e promover a discussão”, ele disse. “O que as pessoas vão dizer sobre o Alcorão –que elas não gostam da fonte tipográfica? Da cor púrpura usada? Esse é um escopo muito limitado e minha tarefa é fundir ideias divergentes.”
E ele também usa as histórias em quadrinhos como meio para transmitir mensagens frescas, positivas, para os jovens da região e de todo o mundo.
Até o final de 2010, 37% da população árabe tinha menos de 14 anos, o que corresponde a aproximadamente 110 milhões de árabes pré-adolescentes, segundo dados fornecidos pela Dubai Media City, que abriga estúdios de animação. Jamal Al Sharif, seu diretor administrativo, disse que “a animação tem um propósito maior do que apenas entretenimento. A popularidade de ‘The 99’ provou que o setor de animação está prestes a dar um novo salto e abrir caminho para o cultivo de novos talentos e criatividade na região”.
Tudo isso não foi uma ideia fácil de ser vendida há alguns anos. O documentário de Solotaroff mostra cenas de como Al Mutawa, ao apresentar seu conceito aos investidores, reforçava seu argumento falando sobre um álbum de figurinhas criado por um empresário árabe, mostrando cenas sangrentas da ocupação israelense na Palestina e de homens-bomba exaltando as virtudes do martírio. O álbum de figurinhas, chamado de “Álbum da Intifada”, era vendido para milhares de crianças na Cisjordânia.
No final de uma cena, Al Mutawa diz: “Minha mensagem era muito clara para os investidores: as crianças muçulmanas precisam de novos heróis”.
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