O fato de o Japão ter suspendido a caça de baleias na Antártida teve
mais repercussão na mídia internacional do que uma decisão igualmente
significativa tomada por Tóquio, não para a vida dos cetáceos, mas para o
equilíbrio regional: voltar para o mercado mundial de armas, que o país
havia abandonado durante quase meio século. Essa decisão certamente
despertou preocupações e críticas na China, mas também na Coreia do Sul,
que assim como o Japão é aliada dos Estados Unidos.
Como a
tensão por diferenças históricas e territoriais com esses dois países
não enfraquece, Pequim e Seul veem nessa volta do Japão ao mercado de
armas um novo avanço do primeiro-ministro, Shinzo Abe, no caminho para a
revisão da Constituição Pacifista de 1947 – que lhe proíbe de entrar em
guerra – para que o país possa participar de um sistema de defesa
coletiva e socorrer aliados ameaçados, algo que as disposições
constitucionais atuais não lhe permitem. Assim, o Japão estaria em
condições de exercer um papel maior na ordem regional para, entre outras
coisas, contrapor o poderio militar chinês.
Em 1967, em plena
Guerra Fria, o Japão estava proibido de exportar armas para os países
comunistas e aqueles colocados sob o embargo das Nações Unidas ou
envolvidos em conflitos internacionais. Essas restrições foram
reforçadas em 1976 e resultaram em uma proibição total de vendas de
armas para outros países. Depois de ter sido indiretamente envolvido no
esforço de guerra dos Estados Unidos no Vietnã – tendo de certa forma
servido como porta-aviões com bases militares americanas em seu
território - , o Japão reafirmou seu pacifismo. Embora Tóquio tenha
flexibilizado essas disposições a partir de 2004, autorizando as
empresas japonesas a participarem da produção de armamentos junto com os
Estados Unidos, a proibição das exportações de material militar
continuou. O fim dessa proibição faz parte daquilo que Tóquio chama de
"pacifismo proativo".
A partir de agora, o Japão pode vender
material militar – que é designado por um outro eufemismo nos documentos
oficiais, "material de defesa" – para os países que ele bem entender,
contanto que eles não representem uma ameaça à paz e à segurança
mundiais e que ele se certifique de que essas armas não serão
reexportadas para um terceiro país. O Japão, que produz munições, fuzis
de assalto, tanques, navios e o hidroavião US-2, pretende vender
material militar às Filipinas ou ao Vietnã, que também têm diferenças
territoriais com Pequim, reforçando assim os laços com esses países.
Paralelamente, ele pretende desenvolver a produção de material militar
em parceria com os Estados Unidos (caça F-35) e países europeus. O
governo Abe também pretende revisar o estatuto de sua ajuda ao
desenvolvimento para poder fornecer uma assistência militar – que
atualmente é unicamente civil – e para "promover os valores universais
de liberdade, de democracia e de direitos humanos", declarou o
vice-ministro das Relações Exteriores Seiji Kihara.
A volta do Japão ao mercado de armas não tem uma dimensão somente
estratégica. Há anos que o patronato reivindica o fim da proibição da
exportação de material militar para estimular a produção de armamentos,
até hoje fortemente integrada à indústria civil, e para favorecer o
desenvolvimento de um verdadeiro complexo militar-industrial. O mercado
de armas japonesas é pequeno – US$ 16 bilhões em 2010, ou seja, 0,6% do
PIB – e os equipamentos produzidos são pouco competitivos em matéria de
preço.
Para além do debate da legitimidade do pacifismo
constitucional japonês dentro do atual clima mundial e dos temores,
provavelmente excessivos, suscitados por uma "remilitarização" do país,
cujas capacidades ofensivas ainda são distantes, surge a questão do
contexto no qual vem se operando essa mudança na política de defesa do
Japão. Tóquio está tentando reagir a um relativo recuo da presença
americana na região e à vontade hegemônica da China reforçando seus
laços com a Austrália, a Índia e os países do Sudeste Asiático. Mas esse
reposicionamento do Japão, desejado por Washington, acontece tendo como
pano de fundo o grande plano de Shinzo Abe de virar a página da guerra.
Sua vontade de afirmar a volta do Japão ao cenário internacional, que é
legítima em si, se conjuga com um negacionismo que provoca protestos na
China e também na Coreia do Sul, o que para Washington é ainda mais
grave. A tensão diz respeito à História – sobre as coreanas obrigadas a
se prostituírem para o exército imperial – e ao santuário Yasukuni, onde
são homenageados criminosos de guerra entre os mortos pela pátria, o
que prejudica a solidez da aliança tripartite entre Coreia do Sul,
Estados Unidos e Japão.
Esse negacionismo suscita entre os
aliados americanos e europeus de Tóquio um mal-estar mais profundo do
que o governo parece imaginar. A dignidade do Japão no cenário mundial
não passa pela negação do mau comportamento – inclusive contra sua
própria população – de parte de seu Exército. Abe está demorando para
perceber isso.
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