terça-feira, 10 de março de 2015


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Nos subúrbios de Pyongyang, 270 rapazes, em torno dos 20 anos, todos filhos homens da elite norte-coreana, preparam seu futuro. Sua vida está regulamentada estritamente desde que se levantam até que se deitam. Organizados em pelotões, e com um supervisor por grupo, precisam de autorização para deixar o local, vigiado por guardas femininas. Não se trata de nenhum quartel. Mas sim da única universidade privada na comunista Coreia do Norte. Além de lecionar todas as aulas em inglês, a Pyongyang University of Science and Technology (Pust) tem outra peculiaridade: é gerida e custeada por cristãos-evangélicos.
— Em essência, os cristãos-evangélicos do mundo estão educando os futuros líderes da Coreia do Norte — conta a jornalista e escritora americana de origem sul-coreana Suki Kim.
Ela sabe do que fala. Infiltrou-se como professora na Pust durante dois trimestres em 2011 — o período coincidiu com a morte do “Querido Líder, Kim Jong-il” — e conta sua experiência no livro “Sem ti no hay nosotros” (“Sem você não há nós”, em tradução livre), da editora Blackie Books, disponível em espanhol a partir de 11 de março.
Esta enigmática universidade começou a funcionar em 2009. Oficialmente, descreve-se como um projeto conjunto. Mas construí-la, conta Suki Kim, custou US$ 35 milhões e sua manutenção diária “requer muitíssimo dinheiro”.
— Pelo que sei, a Coreia do Norte não põe nenhum centavo — explica Suki, acrescentando que são doadores internacionais, principalmente de igrejas sul-coreanas e americanas, que cobrem os gastos. — Ao regime da Coreia do Norte dá no mesmo que seja cristão, muçulmano ou ateu. Tudo é a mesma coisa, porque não acreditam em seu Grande Líder. Dessa forma, se esta organização de estrangeiros quer empregar este montão de dinheiro, por que vão dizer que não?
Seu fundador e presidente é James Kim, um cristão-evangélico de origem coreana e nacionalidade americana que já dirigia outro centro similar em Yanbian, na China, e que desde os anos 1990 cortejava o regime de Pyongyang. No princípio da década passada, recebeu o visto pessoal de Kim Jong-il
— Este grupo está aqui com sua permissão, (no regime) sabem exatamente quem são estes cristãos-evangélicos — assegura a autora em conversa telefônica desde Seul.
Semelhanças com um quartel
A única condição aparente é que não façam proselitismo. Se bem que “isso é o que há na superfície, não sabemos se pactuaram outros acordos”, matiza Suki Kim. Ainda que os responsáveis da Pust vão de mãos dadas com o regime, “sentem-se justificados”, pois, para eles, para eles, trata-se de “um projeto de longo prazo, com o que levam a missão de Deus” à Coreia do Norte, o regime totalitário mais restrito do mundo. Os professores nem sequer cobram: ou bem trabalham de graça, ou tem que buscar um patrocínio, geralmente o de suas igrejas.
Quando a jornalista Suki Kim começou a trabalhar no centro, era o trimestre da primavera. A primeira coisa que chamou a atenção foi a “hipervigilância” no campus. A universidade está construída em formato semicircular, de modo que qualquer área é visível desde qualquer outra e todo mundo pode vigiar todo mundo.
— Já havia estado várias vezes na Coreia do Norte desde 2002. Sabia que tudo estava controlado, mas isso era como um quartel.
Os professores e os estudantes convivem no campus, em blocos de dormitórios adjacentes e vigiados por um grupo de jovens guardas femininas.
— No começo, parece que eram homens, militares homens, mas se decidiu trocá-los por mulheres para dar uma imagem menos intimidatória. Nos disseram que era para nos proteger, mas não do que nos protegiam. Ou melhor, sua missão era impedir-nos de sair.
Cada movimento estava vigiado pelos “acompanhantes” oficiais que o governo impõe aos estrangeiros e que inclusive compartilham blocos de dormitórios com os professores. Os docentes só estão autorizados a abandonar o recinto uma vez por semana, para comprar provisões em Pyongyang ou para excursões milimetricamente organizadas, e sempre escoltados por seus “acompanhantes”. Para os estudantes, o regime parecia inclusive mais claustrofóbico. Não podiam sair da universidade sob nenhuma circunstância. Quando chegou Suki, muitos estavam meses inteiros sem ver suas famílias. Nem sequer eles, os filhos da elite do regime, estão livres da vigilância, e devem se desenvolver em uma atmosfera de desconfiança e medo.
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Diariamente, os estudantes chegam ao refeitório em formação militar, cantando em uníssono hinos ao partido e aos líderes, perfeitamente uniformizados com roupa, gravata e pastas idênticas. Cada grupo forma um pelotão e conta com um supervisor encarregado de vigiar o desenvolvimento das classes. Por turno rotativo, meia dúzia de alunos passa cada noite no edifício dedicado ao estudo dos ensinamentos de Kim Il-sung e Kim Jong-il. Também em patrulhas se repartem tarefas como a limpeza do monumento dedicado ao Grande Líder ou o cuidado do jardim e a poda — a mão — do gramado.
As atividades diárias estão estritamente organizadas. Cada lição, cada livro de texto, deve receber a aprovação das “contrapartes”, o corpo docente norte-coreano encarregado da supervisão. Nos primeiros tempos da universidade, só se davam aulas de inglês. Apesar do nome do centro, não havia professores de ciência, nem de informática, que chegaram nos anos posteriores.
Os docentes podem interagir com os alunos não somente durante a aula, senão também nas horas dedicadas ao esporte ou durante as refeições. A carne escasseia nos almoços, que se limitam a arroz com verduras em conserva. Num país onde 84% da população sofre uma dieta insuficiente, segundo o Programa Mundial de Alimentos da ONU, comer três vezes ao dia já representa um privilégio.
Diferentes níveis de mentiras
Os temas das conversas não são muito mais variados do que os pratos do campus. Limitam-se, sobretudo no início, a esporte, aos estudos ou, um pouco mais adiante, a namoradas reais ou aquelas dos sonhos.
— Estávamos vigiados 24 horas por dia, sete dias por semana; se os garotos davam a mais remota mostra de curiosidade sobre o mundo exterior, isso se silenciava imediatamente — explica Suki Kim. — Cada vez que tinha a sensação de que havíamos avançado um pouco em nossa relação pessoal, eles voltavam a se meter imediatamente em sua concha.
Naqueles dias de 2011, ademais, vivia-se um momento “especialmente vulnerável” para os estudantes. O resto dos universitários norte-coreanos haviam sido enviados para trabalhar em obras de construção. Oficialmente, porque se comemorava o centenário do nascimento do fundador da dinastia, Kim Il-sung, e havia que lhe oferecer uma “nação poderosa e próspera”. Extraoficialmente, porque no Oriente Médio se desenvolvia a primavera árabe e, provavelmente, o regime temia um possível contágio. Os alunos da Pust foram os únicos em todo o país que não foram convocados para este trabalho, uma mostra a mais de seus privilégios especiais. Mas a desconfiança e a vigilância diárias geravam um tecido de mentiras. Mentiras por parte do regime: para demostrar a existência da liberdade de culto, os professores foram convidados para um serviço religioso cristão em Pyongyang. Logo ficou claro a eles que o coro de elegantes damas que entoava hinos era um grupo de cantoras profissionais, e os paroquianos, meros comparsas que desapareceram rapidamente após o último amém.
A periodista também ocultava a verdade. Ainda que tenha apresentado sua solicitação com seu nome autêntico e James Kim sabia que era escritora, Suki nunca revelou que sua intenção era escrever um livro sobre o centro, algo que poderia lhe acarretar consequências graves.
— Tratar de cobrir a Coreia do Norte, o país mais corrupto do mundo, é como cobrir a máfia ou a indústria farmacêutica, não há mais opções do que se infiltrar para tentar obter algo da verdade desse local. Fingi ser professora, mas ensinei de verdade e não me comportei de modo enganoso com meus alunos. Meu comportamento com eles e meu carinho eram genuínos.
E os alunos falavam também constantes mentiras:
— Havia diferentes níveis. As mentiras que seus supervisores os ordenavam que contassem. As que soltavam por puro hábito. As que os haviam ensinado e acreditavam ser verdade.
Boa parte da cultura geral dos estudantes estava baseada em falsidades: acreditavam que o coreano se fala em qualquer lugar do mundo ou que jogar basquete faria com que crescessem mais um pouco. Desconheciam a existência da Torre Eiffel. Não haviam ouvido falar de Steve Jobs. Não tinham internet e unicamente tinham acesso a uma intranet muito limitada.
— Não sabiam como pensar de maneira crítica. Ensinar-lhes a estabelecer um argumento, colocar exemplos, expor sua tese para chegar a uma conclusão não era possível. Não entendiam o conceito de introdução, conclusão ou demonstração. Em seu sistema do Grande Líder não se demonstra nada, não se incentiva a pensar por si mesmo — conta Kim.
Apesar de tudo, ao longo das conversas, e em cartas que escreviam como exercícios de classe, algumas vezes aparecem indícios de que algo há por trás das máscaras. Os garotos admitem tédio pela rotina, nostalgia por suas famílias, com as quais não podem ter contato. As atitudes copiadas se convertem em gestos individuais, personalidades definidas. Um deles chega a confessar que gosta de rock and roll, outro se atreve a perguntar pelo conceito de assembleia nacional.
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E a jornalista também se anima a contar a eles sobre os países para onde tinha viajado, a falar do que é o Skype. Um dia antes de partir, Suki Kim tem a oportunidade de mostrar a um grupo de alunos “Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban”. Mas os rapazes se deliciam por pouco tempo com a história: no mesmo dia, 20 de dezembro de 2011, anuncia-se a morte de Kim Jong-il.
Após sua partida e a publicação do livro, que valeu duras críticas dos responsáveis pela Pust, Kim não voltou a saber de seus alunos.
— Uma parte de mim se preocupa. Qualquer notícia da Coreia do Norte sempre é muito atemorizante...

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