Há meses, os olhos do mundo estão voltados para a situação dos
refugiados sírios, acompanhando famílias que cruzam fronteiras em
caminhadas angustiantes. Enquanto isso, o conhecido coletivo
cinematográfico local Abounaddara vai atrás de um time de futebol.
Em 11 pequenos vídeos postados on-line, o Abounaddara entrevista os
jogadores. “No time há adversários e apoiadores do regime”, diz um
deles. “Se você estiver do lado da oposição, é melhor nem falar. Mas eu
não consigo. Eu sufocaria.”
Os vídeos, intitulados “O Time”, são parte do inigualável trabalho do
Abounaddara: breves relatos do cotidiano sírio, com todas as suas
nuances.
A ideia é apresentar uma alternativa à cobertura habitual sobre o
país, que enfatiza a destruição. “Nosso primeiro inimigo é a
comiseração”, disse Charif Kiwan, porta-voz do coletivo e único membro
identificado. “Estamos lutando por liberdade, por dignidade.”
Ele acrescentou: “Queríamos fazer filmes para mudar a representação a
respeito da nossa sociedade. Por isso, decidimos usar a internet para
contar histórias sobre pessoas comuns”.
Desde que intensificou os seus esforços em 2011, logo após o início
dos protestos contra o ditador sírio, Bashar al-Assad, o Abounaddara já
postou mais de 300 vídeos, com legendas em inglês e francês. Ao longo da
guerra civil síria, os cineastas mantiveram suas identidades em
segredo. Embora relute em falar sobre o número de envolvidos, Kiwan
disse que a maioria é composta por sírios que usam equipamentos
emprestados para fazer o que o grupo chama de “cinema de emergência”.
“O anonimato é um grande espaço para inventar um novo mundo”, disse.
“Você pode ser americano, muçulmano, judeu —é uma forma de dizermos que a
arte está além de todo tipo de questão política.”
Recentemente, o trabalho encontrou um público internacional e
artístico: em 2014, “Sobre Deuses e Cães”, curta-metragem de 12 minutos
gravado em plano-sequência, ganhou o Grande Prêmio do Júri de
curtas-metragens do Festival de Sundance. Neste ano, o coletivo foi
incluído na mostra “Aqui e Alhures”, no New Museum de Manhattan. A
primeira exposição individual do grupo em Nova York estreou em 22 de
outubro na New School, onde fica o Centro Vera List de Arte e Política,
que homenageou o Abounaddara com seu prêmio bienal em 2014.
“Artisticamente, o trabalho deles é de uma beleza extraordinária”,
disse Carin Kuoni, diretora do centro, cujo prêmio é concedido a
artistas que promovam avanços para a justiça social. O sarcástico estilo
“cinema-verdade” do Abounaddara “joga de uma maneira muitíssimo
sofisticada com a história do cinema, subverte-a, brinca com ela e a
impulsiona”, disse Kuoni.
O modelo de distribuição, com todos os vídeos compartilhados
gratuitamente no Vimeo, foi outra razão para a escolha do grupo. “De
repente, temos um acesso imediato, direto e genuíno à situação no
terreno, no país dilacerado pela guerra”, disse ela.
Suzanne Nossel, ex-diretora da ONG Human Rights Watch, se disse
impressionada com o poder de síntese do Abounaddara e do seu uso de
primeiros planos. “Os vídeos te empurram para dentro do aterrorizante
mundo de alguém e depois você é puxado para fora. Acabou para você, mas
não para eles.”
O Abounaddara acredita que a mídia tende a usar imagens cada vez mais
explícitas das tragédias no mundo árabe, as quais não seriam toleradas
nos países ocidentais. Essa é também uma forma de propaganda empregada
pela facção Estado Islâmico (EI). O efeito perverso, segundo Kiwan, é
dessensibilizar os telespectadores.
“Se você vê essas fotos o tempo todo, já não se surpreende mais”,
disse Kiwan. “Você considera que essas pessoas não são muito
importantes, porque elas estão morrendo o tempo todo. Então você acaba
dizendo a si mesmo: ‘Essa gente não é como eu, não é humana como eu’.”
O Abounaddara em geral evita mostrar violência em seus vídeos.
Equilibrar sensibilidade cultural com a profundidade narrativa a
respeito do conflito é difícil, segundo Nossel. E, num lugar como a
Síria, onde os civis sofrem uma perda total de controle, “querer
recuperar a narrativa é muito compreensível”, disse. Ela descreveu o
trabalho do Abounaddara como “um extraordinário ato de coragem”.
Encontrar personagens não é um problema, segundo Kiwan. “As pessoas
estão convivendo o tempo todo com o perigo da morte, então querem contar
a sua história.”
A sátira e o humor têm seu lugar, como em “Meu Nome É Bashar”. O
filme imagina o álbum de família de Assad, reunido a partir das redes
sociais e ao som de uma música inebriante.
Kiwan, 47, cientista político de formação, é o integrante mais antigo
do Abounaddara. Ele fugiu para Paris, onde vive de bicos como
professor. “Perdi tudo o que eu tenho —minha casa na Síria, meu
emprego”, disse, acrescentando que muitos compatriotas seus que ficaram
no país estão “deprimidos, porque esta situação é terrível”. Mas, como
cineastas, o trabalho do grupo “é continuar acreditando em alguma
esperança”.
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