1920-2015
domingo, 29 de novembro de 2015
segunda-feira, 9 de novembro de 2015
sábado, 7 de novembro de 2015
Em um
mundo de bambus e santuários budistas, o Jardim das Lembranças Wo Hop
Shek surpreende por sua beleza.Mas o jardim, que abriu há dois anos como
um lugar onde as famílias pudessem espalhar as cinzas de seus entes
queridos, está deserto.As paredes de granito, que exibem os nomes
daqueles que lá descansam, estão quase nuas."Ninguém quer vir para cá",
disse Lam Ming-wai, que supervisiona o jardim.
Há gerações, as famílias de Hong Kong seguem os mesmos costumes para
honrar seus mortos, disputando pontos privilegiados nas montanhas e
perto do mar para enterros, ou gastando pequenas fortunas em urnas de
jade e cerimônias elaboradas.
Agora, porém, o governo tenta mudar os costumes.Preocupado com a
escassez de espaço e o aumento de mortes, ele empreendeu um esforço para
promover "enterros verdes", estimulando as pessoas a jogar as cinzas em
jardins ou no mar.
Em uma sociedade onde os antepassados são adorados, muitos veem a
ideia como um anátema.A tradição chinesa manda as famílias devolverem
seus parentes falecidos à sua terra natal e enterrá-los ou preservar
suas cinzas para que as gerações futuras possam lhes prestar homenagem.
Funcionários visitaram centros para idosos para vender a ideia de
"retorno à natureza".O governo criou um site memorial como uma
alternativa para as lápides, que conta até com um botão para fazer
oferendas de frutas virtuais.Anúncios de serviço público com referências
ao renascimento têm aparecido na televisão.
Hong Kong é uma das metrópoles mais povoadas do mundo, com 7,2
milhões pessoas amontoadas em cerca de mil quilômetros quadrados.Nas
últimas quatro décadas, antecipando a escassez de espaço para enterros, o
governo conseguiu convencer os moradores a abandonar os enterros em
favor da cremação, algo que antes era raro.Hoje, cerca de 90% dos mortos
são cremados.
Mas, agora, Hong Kong está ficando sem espaço para armazenar as
cinzas.Sophia S. C.Chan, que supervisiona o programa de “enterro verde”,
disse que apenas 9% das pessoas que foram cremadas tiveram suas cinzas
espalhadas no ano passado.Tem sido difícil superar a ideia de que
espalhar as cinzas é uma falta de respeito com os mortos.
O governo providenciou oito jardins para isso.Além disso, passou a
oferecer passeios de balsa para aqueles que desejam jogar as cinzas no
mar.No entanto, muitos ainda têm dúvidas.
Quando o pai de Lam morreu, em 2012, ele sugeriu à sua mãe que
honrassem o desejo do pai jogando suas cinzas no mar. Ela, no entanto,
ficou furiosa."Ela achava que os restos mortais seriam comidos pelos
peixes", disse.
No fim, ele acabou por convencê-la.Lam garantiu que iria pendurar uma
placa com o nome do pai em um jardim nas proximidades do memorial, para
que a viúva tivesse um lugar para levar frutas e crisântemos, ajoelhar e
rezar todos os anos.
Quase
20 anos atrás, Lee Geung-ja trabalhava em uma fábrica na Coreia do
Norte quando um acidente com plástico derretido deixou seu rosto
manchado e com cicatrizes. A maior parte de sua sobrancelha e sua
pálpebra esquerdas foi destruída. Como ela disse, ficou parecendo “um
monstro”.
Em 2010, Lee desertou para a Coreia do Sul, onde trabalhou sozinha limpando edifícios tarde da noite para evitar olhares.
Sua timidez não foi ajudada pelo fato de que a sociedade
sul-coreana dá uma enorme importância à aparência, especialmente das
mulheres: a cirurgia plástica é um presente comum para as meninas quando
terminam o colégio.
“Quando eu caminho na rua ou tenho de encontrar outra pessoa,
instintivamente baixo o rosto e viro para a esquerda, para não mostrar
esse lado”, disse Lee, 40. “Na Coreia do Sul, onde até as pessoas de boa
aparência fazem cirurgias plásticas, acho mais difícil competir com
esse rosto.” Agora, Lee vai receber uma ajuda com a qual nunca sonhou:
um cirurgião plástico se ofereceu para ajudá-la a recuperar em parte
suas antigas feições e sua autoestima.
Trata-se de um programa lançado neste ano pela polícia e por
voluntários da Associação Coreana de Cirurgiões Plásticos para ajudar os
desertores da Coreia do Norte. Muitos dos 28 mil desertores que vivem
no Sul carregam marcas que tornam difícil seu encaixe na sociedade
capitalista.
Muitas vezes, eles ganham menos e são tratados como funcionários
despreparados e emocionalmente instáveis. Além disso, são perseguidos
por memórias de parentes que morreram de fome e por temores pelos que
deixaram para trás. Esses medos levam muitos, inclusive os que foram
entrevistados para esta reportagem, a adotar pseudônimos para proteger
seus parentes.
Kim Kyeong-suk, que é superintendente na delegacia de Yongsan, em
Seul, teve a ideia do programa depois de saber que muitas pessoas do
Norte não conseguiam encontrar trabalho por causa de suas cicatrizes.
Para Lee Cheon-seong, uma tatuagem bastou para transformá-lo de
patriota em pária. Em 1986, ele e vários camaradas militares da Coreia
do Norte se tatuaram com promessas de lealdade a Kim Il-sung, o fundador
do país.
Foi só quando Lee fugiu de um expurgo político e desertou para a
Coreia do Sul, no ano passado, que ele soube que muitos sul-coreanos
associam as tatuagens ao crime organizado. “A tatuagem sempre foi um
problema nas entrevistas de emprego”, disse Lee, 45.
Agora, Hong Jeong-geun está removendo as tatuagens de Lee.
Para as autoridades sul-coreanas, ajudar os desertores a se adaptarem
pode ser uma experiência na gestão de possíveis problemas sociais no
futuro, caso as duas Coreias voltem a se unir.
Segundo uma pesquisa feita pelo governo, os desertores acreditam que
sua situação econômica no Sul capitalista é inferior à que tinham no
Norte. Eles ganham 66% de um salário médio sul-coreano, segundo a
pesquisa. Seu índice de desemprego é quatro vezes maior que a média e o
suicídio três vezes mais comum.
Lee fugiu da Coreia do Norte em 1998, no auge de uma crise, e entrou
na China como imigrante ilegal. Ela conheceu um homem e teve um filho
antes de chegar à Coreia do Sul.
Recentemente, Lee fez sua primeira consulta a Park Sang-hyeon em Seul. O médico disse que ela precisará de várias cirurgias.
Apesar do duro caminho que tem pela frente, ela acalenta um sonho
modesto: ir a uma reunião de pais na escola de seu filho pela primeira
vez.
“Meu maior medo era que meu filho sentisse vergonha de mim quando seus colegas vissem meu rosto”, disse.
Os adolescentes palestinos que entravam na loja de presentes e música
True Love faziam todos o mesmo pedido: canções nacionalistas —e das
novas.
O proprietário prontamente lhes mostrava os CDs que acabara de
arranjar no balcão, como “Jerusalém Está Sangrando”, que traz a faixa
“It’an, It’an” [Apunhale, apunhale] —com seu poderoso ritmo pulsante.
“Quando escuto essas músicas, fervo por dentro”, disse o jovem Khader
Abu Leil, 15, explicando que a batida forte do “backbeat” o ajuda a se
preparar para as manifestações quase diárias em que atira pedras contra
soldados israelenses.
Inspirados por uma onda recente de ataques de palestinos contra
judeus de Israel e choques mortais com as forças de segurança
israelenses, músicos da Cisjordânia e de outros lugares produziram
dezenas de canções militaristas, muitas vezes violentas.
Publicadas e compartilhadas no iTunes e no Facebook, elas formam uma
espécie de trilha sonora da intifada, ilustrada por vídeos que incluem
imagens terríveis de fatos recentes.
“Apunhale o sionista e diga que Deus é grande”, declara uma faixa,
referindo-se à série de ataques a faca cometidos desde 1º de outubro.
“Que as facas apunhalem seu inimigo”, diz outra.
Uma terceira é chamada “Continuem a Intifada” e vem com uma
advertência no YouTube —o vídeo mostra a mulher palestina que puxou uma
faca em uma estação de ônibus de Afula cercada por soldados israelenses
apontando armas.
“Resista e carregue suas armas”, diz a canção. “Diga sim e seja um mártir.”
Adnan Balaweneh, o compositor por trás de “Continuem a Intifada” e de
outras quatro canções recentes, disse que, quando ele viu “os soldados
atirarem contra a garota em Afula”, pela televisão, imediatamente sentiu
“que precisava compor algo para armar o povo palestino”.
Os palestinos têm uma tradição de música de protesto que vem de suas rebeliões contra os britânicos nos anos 1930.
Durante a guerra em 2014 entre Israel e militantes da faixa de Gaza,
comemorações rítmicas dos ataques de foguetes contra Tel Aviv jorraram
dos rádios de carros em todo o território litorâneo.
Vários especialistas dizem que a escala e o estilo das novas músicas
palestinas são incomuns, alimentados —como a própria rebelião— pelas
redes sociais. Alguns elogiaram as canções como uma forma criativa e
construtiva de resistência a Israel, enquanto outros disseram que são
musicalmente fracas e só dão mais força às denúncias de incitamento
feitas pelo inimigo.
“Para mim, atirar pedras na primeira intifada foi uma forma de
expressão”, disse Ramzi Aburedwan, que ficou famoso ao ser fotografado
quando menino atirando uma pedra em 1988 e hoje dirige escolas de música
em campos de refugiados palestinos. “A ferramenta foi a pedra na
primeira intifada, e hoje é a música.”
“Som e palavras refletem a situação”, acrescentou Aburedwan. “Não
posso fazer uma canção falando sobre a natureza, a beleza e coisas
pacíficas, quando vejo todos os dias mais de dez vídeos em que jovens
são executados.”
Mas Basel Zayed, compositor, artista e musicoterapeuta de Jerusalém
Oriental, criticou a instrumentação das novas canções, por “usarem o
mesmo trecho de um ritmo e apenas repeti-lo”, e suas letras como “não
muito expressivas, as palavras principais são provavelmente ‘matar’ ou
‘fazer’ ou ‘bombardear’ ou ‘explodir’”.
“Foi feito como uma reação, e é uma pena, pois passa uma imagem muito
negativa de como os palestinos podem se expressar”, acrescentou. “Eu
não acho que fazer uma canção tão depressa serve à nossa mensagem da
melhor maneira. É bom deixar as coisas se firmarem. Quando você está
dentro do trauma, não sabe realmente o que está lhe acontecendo.”
Novas canções surgem diariamente on-line todos os dias, muitas de
artistas pouco conhecidos e com baixo valor de produção —o vídeo no
YouTube de “Intifada of Knives” (Intifada das facas) é uma colagem crua
que mostra o Domo da Rocha com fogo por baixo e um homem com um
“kaffiyeh” (lenço xadrez) cobrindo seu rosto, segurando um estilingue.
No final, uma adaga se tinge de sangue. Várias palavras simplesmente
pronunciadas se sobrepõem à percussão árabe.
Balaweneh, 37, pai de três filhos, trabalha diariamente compondo para
uma banda de música no estilo militar da Autoridade Palestina.
Ele também atirou pedras na primeira intifada. Na segunda, que
começou em 2000, disse que participou “com meus poemas e minhas
canções”. Hoje, faz casamentos e eventos políticos com seu trio, A
Tempestade, baseado na cidade de Nablus, na Cisjordânia.
“Nossas canções não dizem para as pessoas praticarem ataques, elas se
concentram em lhes dizer que defendam seus direitos, seu país, sua
terra”, explicou Balaweneh. “Hoje, por causa da situação atual, nossas
canções precisam conter muita ação, para fazer o sangue fluir e ferver.”
Há 22 anos, Li Xue vive como um fantasma, banida da vida normal pela
política do filho único da China. E mesmo agora que o Partido Comunista
declarou o fim dessa política, disse ela, parece não haver um final
rápido para o limbo em que vivem muitas crianças e adultos nascidos
“fora do plano”, como ela.
“Li Xue é uma cidadã chinesa”, disse sua mãe, Bai Xiuling. “Mas ninguém reconhece sua existência. Só a família.”
Segunda filha de uma família do sul de Pequim, o nascimento de Li
contrariou as regras que obrigam a maioria dos casais urbanos a ter
apenas um filho.
Ela cresceu como uma pária em seu próprio país, sem documentos de
identidade, sem direitos aos serviços públicos. Ela nunca foi à escola e
tem dificuldade para encontrar trabalho.
“Há tantas coisas que eu preciso superar, em comparação com as
pessoas normais”, disse Li em uma pausa de seu trabalho como garçonete.
“Eu não deveria ser responsabilizada por isso.”
A história de Li Xue ilustra como as regras de planejamento familiar
na China tiveram repercussões muito mais complexas e duradouras que
simplesmente limitar o número de filhos.
Sem permissão de residência e carteira de identidade, chineses como
Li não têm acesso à educação, a tratamentos de saúde, bons empregos e
licença de casamento.
Li disse que ela sentiu apenas uma curiosidade muda quando o imprensa
anunciou recentemente que o Partido Comunista permitiria que todos os
casais tenham dois filhos. Segundo ela, já alimentou muitas falsas
esperanças.
“Tenho 22 anos e já passei por muita coisa”, afirmou a jovem. “O
governo falou em mudanças de legislação e políticas, mas eu sinto que
simplesmente temos de esperar para ver.”
Milhões de chineses vivem sem a “permissão de residência”, o “hukou”,
que serve como uma espécie de passaporte, permitindo que as pessoas
naveguem pela burocracia estatal do país.
Este ano, um pesquisador do governo, Wan Haiyuan, calculou que pelo
menos 6,5 milhões de chineses não têm situação oficial porque nasceram
fora das regras de planejamento familiar.
Oficialmente, essas crianças podem ter autorizações de residência,
mas na prática as autoridades as negam, como uma maneira de punir as
famílias, ou estas evitam solicitar a permissão por medo de serem
multadas.
Os governos locais sofreram intensa pressão para cumprir as metas
populacionais, encorajando os administradores a recorrer a abortos
forçados, demolição de casas e outras medidas coercitivas para castigar
as famílias.
Li disse que seus pais não violaram intencionalmente as regras de
planejamento familiar, e se recusaram a pagar as multas consequentes.
Sua mãe e seu pai tinham deficiências que deveriam ter lhes permitido
um segundo filho, disse ela. Sua mãe até pensou em abortar, mas os
médicos disseram que ela estava muito doente na época e a operação seria
um risco, disse Li.
Li Xue cresceu à sombra de sua irmã, Li Bin, oito anos mais velha e
nascida com aprovação oficial. A primogênita foi à escola; Li Xue não
pôde.
Ela disse que aprendeu com sua irmã e lendo livros por conta própria.
Sua irmã podia ir ao médico quando ficava doente. Li não podia, porque
as clínicas e hospitais de Pequim exigem papéis de identificação, que
ela não tinha.
E enquanto sua irmã encontrou trabalho em uma fábrica Li Xue tinha dificuldade porque os empregadores exigiam documentos.
Li Xue disse que teve de enfrentar uma série de terríveis frustrações
e becos sem saída. Conseguiu o emprego de garçonete por meio de uma
amiga, com um empregador que aceitou a falta de documentos.
Ela vive com sua mãe e a irmã em uma casa com poucos móveis; seu pai
morreu no ano passado. Li Xue disse que resiste até a pensar em ter um
namorado, porque o casamento parece impossível, pelo menos por agora.
Segundo ela, se um dia conseguir a permissão de residência e outros
documentos e puder ir à universidade, quer estudar direito e atuar pelo
fim da punição às crianças que nascem sem autorização.
“Tenho estudado a lei para que poder me defender e às pessoas na mesma situação que eu”, explicou.
Em uma cultura em que os funerais são acontecimentos elegantes que
duram três dias, com centenas de convidados, o velório de Song In-sik
foi modesto. Tinha um só convidado —um voluntário para realizar um
ritual para uma pessoa que não conhecia.
Park Jin-ok colocou uma mesa de frutas, peixe seco e flores
artificiais diante da unidade que continha os restos mortais de Song no
necrotério do Hospital Sungae. Ele queimou incenso e se inclinou antes
que o diretor do mortuário lhe pedisse para sair.
Song, 47, teve sorte de ter uma cerimônia. Um número crescente de
sul-coreanos está morrendo sozinho, sem nenhum parente para fazer um
ritual que eles acreditam ser essencial para a passagem para o outro
mundo.
O aumento das chamadas mortes solitárias —de 682 em 2011 para 1.008
no ano passado— oferece uma visão de como a estrutura familiar está
mudando na Coreia do Sul.
Apesar de a maioria ter se beneficiado da pujança econômica das
últimas décadas, as famílias sofrem a pressão do crescimento econômico e
demográfico.
“Os que ficam para trás são cada vez mais solitários, porque, ao
contrário dos pobres de antigamente, eles veem suas comunidades
destruídas”, disse o reverendo Kim Keun-ho. “Os pobres e velhos não têm
para onde ir.”
Kim e outros situam o problema na crise financeira asiática dos anos
1990, quando o emprego vitalício desapareceu. Muitos que perderam seus
empregos então nunca os recuperaram.
Sua queda simboliza o desmoronamento de um contrato social confuciano
que regeu os coreanos durante eras. Os pais gastavam todas as suas
economias em prol do sucesso dos filhos, e contavam com seu apoio na
velhice. Hoje, muitos se veem sem poupanças para a aposentadoria ou
filhos capazes de sustentá-los.
“Uma sociedade que deixa seus pobres e abandonados morrerem sozinhos e
partirem sem funeral está morrendo em seu coração”, disse Park, cujo
grupo, Nanum & Nanum, é um dos que fazem funerais para quem morrem
só. “Eles passam seus últimos dias temendo que seus restos sejam
tratados como lixo.”
Na Coreia do Sul, a posição de uma família é medida durante um
funeral. Centenas de parentes, amigos e colegas podem aparecer para
fazer reverência diante do retrato do falecido.
Os convidados com frequência se sentam no chão e conversam, enquanto a
família lhes oferece comida e bebida. Os convidados geralmente trazem
dinheiro para ajudar a família. Mas para os pobres tal acontecimento
está fora de alcance. Alguns não conseguem sequer recuperar o corpo.
A Coreia do Sul tem uma das sociedades que envelhecem mais depressa
no mundo. Hoje os maiores de 65 anos representam 13,1% da população,
contra 3,8% em 1980. Cerca de 30% das famílias mais antigas têm renda
inferior ao nível de pobreza absoluta.
O medo do destino desconhecido perturbava Ham Hak-joon, 87, que vive
sozinho em um quarto alugado por US$ 130 ao mês em um bairro decadente.
Seu temor foi superado quando a Nanum & Nanum concordou em
realizar seu funeral. “Estou preparado agora, pronto para morrer”, disse
ele.
Na
tentativa de transformar o Iraque de ditadura em democracia após a
invasão liderada pelos norte-americanos, em 2003, o Grande Aiatolá Ali
al-Sistani, maior autoridade espiritual para muitos dos muçulmanos
xiítas do mundo, se destacou como o grande defensor das eleições diretas
e da garantia de que os políticos, e não os clérigos, dirigissem o
país.
Ele moldou a relação entre religião e política aqui de uma forma
totalmente distinta da teocracia xiíta no Irã, onde outro aiatolá goza
do poder supremo.
Agora, por causa da preocupação com o poder cada vez maior do vizinho
e das milícias sob seu comando em meio a uma guerra sectária no próprio
país, Sistani fez uma de suas maiores intervenções na política nacional
para, segundo os especialistas, injetar força no Estado.
Há mais de dois meses ele vem dando instruções, através de um
representante, durante os sermões das sextas, ao primeiro-ministro
Haider al-Abadi, com ordens de punir autoridades corruptas, reformar o
Poder Judiciário e apoiar as forças de segurança nacionais em vez dos
grupos apoiados pelo Irã. De fato, o filho do aiatolá mantém contato
telefônico direto com o gabinete do governo, na tentativa de acelerar as
mudanças.
A intervenção recente provocou um novo questionamento entre os
líderes políticos e diplomatas em Bagdá: será que Sistani, com a
desculpa de mais uma vez auxiliar o país castigado pela crise, está na
verdade ensaiando uma mudança fundamental rumo ao regime clerical?
“Tem gente muito surpresa ao ver Sistani tão envolvido na política”,
diz um líder xiíta em Bagdá, que só concordou em falar se não tivesse
seu nome revelado porque não quer ser considerado um dos críticos ao
aiatolá.
“Na verdade, na prática, está fazendo o que Khamenei faz e o que
Khomeini fez”, afirma, referindo-se ao supremo líder do Irã, o Aiatolá
Ali Khamenei, e seu guia revolucionário, o Aiatolá Ruhollah Khomeini.
Aos 85 anos, a saúde de Sistani está fragilizada. Ele viaja
constantemente a Londres para tratamento médico e raramente é visto em
público. Apesar disso, faz questão de cumprimentar quem vai visitá-lo em
seu escritório, em Najaf, não muito longe do Santuário do Imã Ali, um
dos monumentos mais sagrados do Islamismo xiíta.
Como líder espiritual supremo do segmento, é ele que instrui os fiéis sobre como rezar, como se lavar e o que comer.
Apesar da influência, seu papel público no Iraque geralmente é
descrito como “paternal”, guiando a política de cima, intervindo em
tempos difíceis, mas, do contrário, mantendo-se distante das disputas de
governo.
Essa filosofia, conhecida aqui como a tradição “quietista”, é o que
difere o Iraque do Irã e Najaf da cidade santa do Irã, Qom. Faz parte
também da rivalidade histórica entre os dois centros antigos de erudição
xiíta.
Porém, em meio à atual crise que se abate sobre o país – da guerra
contra o Estado Islâmico à corrupção do governo e a ameaça que as
milícias apoiadas pelo Irã e seus líderes políticos representam a Abadi e
ao Estado iraquiano –, Sistani deu um novo passo.
“De uns meses para cá ele sentiu um grande perigo no cenário
político e de segurança. Achou que era seu dever patriótico agir”,
explica Ali Alaq, legislador xiíta em Bagdá.
Até agora, entretanto, esse desejo de reformas, embora aceito por
Abadi, resultou em pouco sucesso. O primeiro-ministro reduziu os
salários dos políticos e o número de seguranças, além de eliminar várias
posições nos altos escalões, mas ainda não promoveu esforços sérios
para acabar com a corrupção ou reformar o Judiciário.
No ano passado, fez uma convocação, prontamente atendida, para que os
jovens saíssem em combate ao Estado Islâmico – só que a fátua resultou
no surgimento de novas milícias e o crescimento das já existentes,
controladas pelo Irã, cuja influência só faz aumentar, pois os grupos
armados que controla se tornaram essenciais na luta contra os
militantes.
Segundo os especialistas, Sistani teme que essas milícias sejam uma
ameaça à unidade iraquiana, em parte porque muitos de seus líderes e
políticos a que são afiliados desafiam os esforços de reconciliação com
as minorias sunitas, considerados uma prioridade para o clérigo.
Os analistas ainda afirmam que, apesar dos temores, Sistani não se
opõe à atividade iraniana no Iraque. Mehdi Khalaji, membro do Instituto
Washington de Políticas do Oriente Próximo que estudou em Qom e já
escreveu sobre o aiatolá, disse que a principal preocupação do religioso
é a tensão entre sunitas e xiítas e o papel do Irã no reforço das
divisões sectárias de seu país.
Entretanto, ao tentar agir para diminuir essa influência, está apenas imitando o sistema do vizinho.
Um diplomata em Bagdá, referindo-se às cidades santas xiítas de onde
os políticos recebem instruções nos sermões das sextas-feiras, comentou:
“Da mesma forma que os líderes políticos iranianos se guiam por Qom,
toda semana nos voltamos para Karbala e Najaf.”
A questão é se a proeminência de Sistani na política será duradoura –
e se o público e os políticos desejam que esse papel de destaque no
governo continue a se expandir.
Em breve entrevista, o filho do aiatolá, Muhammed Ridha Ali, deu a entender que a intervenção não deve ser permanente.
“Talvez daqui a um ano ele se recolha novamente”, disse.
Eles chegaram num fluxo incessante, 10 mil por dia no auge, até 1
milhão de imigrantes dirigindo-se à Europa desde o começo deste ano,
empurrando bebês em carrinhos e pais idosos em cadeiras de rodas, e
levando nas meias as economias da vida inteira. Vieram à procura de uma
nova vida, mas, sob muitos aspectos, eram eles os arautos de uma nova
era.
Há mais refugiados no mundo hoje —60 milhões— do que em qualquer
outro momento registrado historicamente, e eles estão se deslocando em
quantidades inéditas desde a Segunda Guerra Mundial.
Chegam não apenas da Síria, mas também de vários países e regiões,
incluindo Afeganistão, Iraque, Gaza e até Haiti, além de mais ou menos
uma dúzia de países da África Subsaariana e do Norte de África. São
embaixadores extraoficiais de Estados fracassados, guerras
intermináveis, conflitos intratáveis.
O mais impressionante na atual onda migratória, no entanto, é como
ela ainda pode crescer. E se os militantes do Estado Islâmico
continuarem impondo seu domínio brutal sobre o Iraque e a Síria? E se o
Taleban continuar ampliando suas conquistas territoriais no Afeganistão,
levando ainda mais pessoas a fugir?
Um quarto dos afegãos declarou numa pesquisa do Gallup que gostaria
de ir embora do país, e se prevê que mais de 100 mil tentarão fugir para
a Europa neste ano.
Há entre 6 milhões e 8 milhões de refugiados internos na Síria, e
mais de 4 milhões de refugiados sírios nos vizinhos Líbano, Turquia e
Jordânia.
Os pelo menos 5 milhões de coptas do Egito, última grande seita
cristã restante no Oriente Médio, estão profundamente preocupados com o
seu futuro num país tão instável e hostil.
Antigos grupos minoritários como os yazidis do Iraque já perderam
seus lares, assim como muitas pequenas comunidades de cristãos caldeus,
assírios e nestorianos que moravam no norte do país.
Os iemenitas ainda não precisaram abandonar sua terra natal em número
considerável, mas sua situação se agrava diariamente, por causa do
racionamento de alimentos e remédios em decorrência da guerra civil e
dos persistentes bombardeios lançados por aviões sauditas.
O Iêmen não fica muito mais distante da Europa que a Eritreia,
atualmente a maior fonte de refugiados africanos e, com 25 milhões de
habitantes, tão populoso quanto o Afeganistão.
E não é só o Oriente Médio e o Norte da África que os líderes
europeus precisam levar em conta. A pesquisa Gallup, com base em mais de
450 mil entrevistas feitas em 151 países entre 2009 e 2011, constatou
que na Nigéria, que tem o dobro da população da Alemanha, 40% das
pessoas emigrariam para países mais ricos.
E a lição de 2015 é que eles podem. “Estamos falando de milhões de
possíveis refugiados que tentam chegar à Europa, não milhares”, afirmou
Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, em postagem no Twitter.
Muitas dessas pessoas estão fugindo de perseguições, da pobreza, de
conflitos e de guerras étnicas e religiosas, mas esses problemas
geralmente são sintomas de mudanças mais profundas.
No Oriente Médio e África, fronteiras feitas por dinastas otomanos e
colonialistas europeus estão caindo, porque os Estados autocráticos que
impuseram uma paz sombria continuam implodindo.
À medida que as linhas tradicionais de autoridade se rompem, milícias
radicais como o Estado Islâmico e a Boko Haram buscam preencher o
vazio, enquanto seitas e grupos étnicos minoritários sofrem em suas
mãos.
A mudança climática também está agitando as sociedades de todo o
Oriente Médio e África. A Síria passava por uma grave seca quando a
guerra eclodiu, e vastas áreas da África Subsaariana estão se tornando
inabitáveis.
Com o aumento do nível do mar, um único tufão no golfo de Bengala pode deixar milhões de desabrigados em Bangladesh.
A Europa gerou movimentos maciços de refugiados num passado não tão
distante, mas a novidade agora não é apenas a escala das chegadas, e sim
a enorme variedade de lugares que eles estão deixando para trás.
Muitos imigrantes e refugiados são de países onde o Ocidente tentou
intervir e fracassou —Iraque e Afeganistão, em particular. Existem hoje
cerca de 2 milhões de refugiados iraquianos, muitos deles se dirigindo
para a Europa.
Entre eles estão pessoas como o jovem médico curdo Muhammad Basher,
que pegou todas as suas economias e as gastou quase inteiramente antes
mesmo de chegar à fronteira da Croácia —foram US$ 1.200 só por um
assento num bote na travessia marítima da Turquia até a Grécia. “Melhor
morrer rapidamente lá do que lentamente no Iraque”, disse ele.
A Líbia é outro caso de intervenção desastrada, por parte de
franceses e britânicos, com o apoio americano. Poucos líbios se
dispuseram a engrossar o êxodo, mas o caos no seu país facilitou a
passagem de outros migrantes africanos em direção à Europa.
Apesar de a maioria das pessoas ser da Síria, do Iraque e do
Afeganistão, os que recentemente cruzaram aldeias como esta, na Sérvia,
poderiam ter chegado de praticamente qualquer lugar.
Duas mulheres e uma menina haitianas passaram por aqui no começo de
outubro, segundo representantes do Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (Acnur). Elas haviam viajado de avião da ilha
caribenha para a Turquia, onde empreenderam a jornada pelos Bálcãs
promovida pelos traficantes.
Outros vêm de lugares como a Eritreia, onde os homens jovens estão
fugindo de uma brutal ditadura que lhes oferece a perspectiva de uma
vida inteira de serviço militar não remunerado.
Alguns estão fugindo da guerra civil na República Democrática do
Congo ou da pobreza em países como Gâmbia e Senegal. Muitos,
especialmente na África Subsaariana, são motivados por problemas como a
desertificação. Outros estão à procura de oportunidades econômicas.
Apesar de as autoridades dizerem que o problema ainda é
administrável, a crise migratória inspirou uma reação dos partidos
nacionalistas de direita da Europa.
“Precisamos manter os números em perspectiva”, disse Alexander Betts,
diretor do Centro de Estudos de Refugiados da Universidade de Oxford.
“Se o Líbano pode receber 1 milhão de sírios, apesar de ter o tamanho de
Maryland, uma região do tamanho da Europa deve ser capaz de abrigar
milhões.”
Mesmo nos quatro países da União Europeia que inicialmente se
opuseram à modesta cota de 120 mil refugiados a serem assentados na
região —Polônia, Eslováquia, República Tcheca e Hungria—, ergueram-se
vozes em favor dos estrangeiros.
Embora o sistema de cotas ainda não tenha entrado totalmente em
vigor, uma recente carta aberta assinada por ex-presidentes,
ex-primeiros-ministros e outros europeus proeminentes, muitos deles
cidadãos desses países refratários, pedia aos seus governos que
abandonem sua hostilidade aos imigrantes e recordem o seu próprio
passado recente.
Mas esse pode ser um argumento difícil de defender numa Europa
preocupada com o recrutamento de terroristas entre populações muçulmanas
descontentes, derivadas de migrações anteriores e bem menores.
“Em toda a Europa, a xenofobia e o racismo estão desenfreados, e
partidos nacionalistas e até de extrema direita estão ganhando terreno”,
escreveu recentemente Joschka Fischer, ex-ministro de Relações
Exteriores alemão, num artigo publicado pelo serviço de notícias on-line
Project Syndicate.
“Ao mesmo tempo, este é só o início da crise, porque as condições que levam as pessoas a fugirem só irão piorar.”
Sonja Licht, do Centro Internacional para a Transição Democrática,
concordou. “Não acho que essa onda possa parar. Talvez possa se tornar
menos intensa. Precisamos nos preparar. O Norte global deve estar
preparado para os deslocamentos do Sul. Este não é um problema só para a
Europa, mas para o mundo inteiro.”
Policiais eslovenos escoltam migrantes até acampamento de triagem
perto de Dobova; guerra, seca e outros fatores expulsam milhões de
pessoas
Há atualmente 60 milhões de refugiados dentro e fora de seus países, maior número já registrado na história
Migrantes passam diante de uma capela a caminho de um acampamento de triagem nos arredores de Dobova, na Eslovênia, em outubro
O que diferencia a atual migração das anteriores é a enorme diversificação nos locais de origem dos estrangeiros.
Há meses, os olhos do mundo estão voltados para a situação dos
refugiados sírios, acompanhando famílias que cruzam fronteiras em
caminhadas angustiantes. Enquanto isso, o conhecido coletivo
cinematográfico local Abounaddara vai atrás de um time de futebol.
Em 11 pequenos vídeos postados on-line, o Abounaddara entrevista os
jogadores. “No time há adversários e apoiadores do regime”, diz um
deles. “Se você estiver do lado da oposição, é melhor nem falar. Mas eu
não consigo. Eu sufocaria.”
Os vídeos, intitulados “O Time”, são parte do inigualável trabalho do
Abounaddara: breves relatos do cotidiano sírio, com todas as suas
nuances.
A ideia é apresentar uma alternativa à cobertura habitual sobre o
país, que enfatiza a destruição. “Nosso primeiro inimigo é a
comiseração”, disse Charif Kiwan, porta-voz do coletivo e único membro
identificado. “Estamos lutando por liberdade, por dignidade.”
Ele acrescentou: “Queríamos fazer filmes para mudar a representação a
respeito da nossa sociedade. Por isso, decidimos usar a internet para
contar histórias sobre pessoas comuns”.
Desde que intensificou os seus esforços em 2011, logo após o início
dos protestos contra o ditador sírio, Bashar al-Assad, o Abounaddara já
postou mais de 300 vídeos, com legendas em inglês e francês. Ao longo da
guerra civil síria, os cineastas mantiveram suas identidades em
segredo. Embora relute em falar sobre o número de envolvidos, Kiwan
disse que a maioria é composta por sírios que usam equipamentos
emprestados para fazer o que o grupo chama de “cinema de emergência”.
“O anonimato é um grande espaço para inventar um novo mundo”, disse.
“Você pode ser americano, muçulmano, judeu —é uma forma de dizermos que a
arte está além de todo tipo de questão política.”
Recentemente, o trabalho encontrou um público internacional e
artístico: em 2014, “Sobre Deuses e Cães”, curta-metragem de 12 minutos
gravado em plano-sequência, ganhou o Grande Prêmio do Júri de
curtas-metragens do Festival de Sundance. Neste ano, o coletivo foi
incluído na mostra “Aqui e Alhures”, no New Museum de Manhattan. A
primeira exposição individual do grupo em Nova York estreou em 22 de
outubro na New School, onde fica o Centro Vera List de Arte e Política,
que homenageou o Abounaddara com seu prêmio bienal em 2014.
“Artisticamente, o trabalho deles é de uma beleza extraordinária”,
disse Carin Kuoni, diretora do centro, cujo prêmio é concedido a
artistas que promovam avanços para a justiça social. O sarcástico estilo
“cinema-verdade” do Abounaddara “joga de uma maneira muitíssimo
sofisticada com a história do cinema, subverte-a, brinca com ela e a
impulsiona”, disse Kuoni.
O modelo de distribuição, com todos os vídeos compartilhados
gratuitamente no Vimeo, foi outra razão para a escolha do grupo. “De
repente, temos um acesso imediato, direto e genuíno à situação no
terreno, no país dilacerado pela guerra”, disse ela.
Suzanne Nossel, ex-diretora da ONG Human Rights Watch, se disse
impressionada com o poder de síntese do Abounaddara e do seu uso de
primeiros planos. “Os vídeos te empurram para dentro do aterrorizante
mundo de alguém e depois você é puxado para fora. Acabou para você, mas
não para eles.”
O Abounaddara acredita que a mídia tende a usar imagens cada vez mais
explícitas das tragédias no mundo árabe, as quais não seriam toleradas
nos países ocidentais. Essa é também uma forma de propaganda empregada
pela facção Estado Islâmico (EI). O efeito perverso, segundo Kiwan, é
dessensibilizar os telespectadores.
“Se você vê essas fotos o tempo todo, já não se surpreende mais”,
disse Kiwan. “Você considera que essas pessoas não são muito
importantes, porque elas estão morrendo o tempo todo. Então você acaba
dizendo a si mesmo: ‘Essa gente não é como eu, não é humana como eu’.”
O Abounaddara em geral evita mostrar violência em seus vídeos.
Equilibrar sensibilidade cultural com a profundidade narrativa a
respeito do conflito é difícil, segundo Nossel. E, num lugar como a
Síria, onde os civis sofrem uma perda total de controle, “querer
recuperar a narrativa é muito compreensível”, disse. Ela descreveu o
trabalho do Abounaddara como “um extraordinário ato de coragem”.
Encontrar personagens não é um problema, segundo Kiwan. “As pessoas
estão convivendo o tempo todo com o perigo da morte, então querem contar
a sua história.”
A sátira e o humor têm seu lugar, como em “Meu Nome É Bashar”. O
filme imagina o álbum de família de Assad, reunido a partir das redes
sociais e ao som de uma música inebriante.
Kiwan, 47, cientista político de formação, é o integrante mais antigo
do Abounaddara. Ele fugiu para Paris, onde vive de bicos como
professor. “Perdi tudo o que eu tenho —minha casa na Síria, meu
emprego”, disse, acrescentando que muitos compatriotas seus que ficaram
no país estão “deprimidos, porque esta situação é terrível”. Mas, como
cineastas, o trabalho do grupo “é continuar acreditando em alguma
esperança”.
No início de “Masaan”, o filme indiano mais aclamado do ano, um casal
de amantes se encontra em um hotel decrépito em Varanasi, cidade
sagrada do norte do país.
No meio de seu encontro sexual clandestino, policiais invadem o
quarto e ameaçam o casal, desencadeando uma série de acontecimentos que
terá consequências devastadoras.
Composto de tramas paralelas mas interligadas, “Masaan” trata das
castas e do conservadorismo social na Índia, que continuam a dominar o
país em sua trajetória vertiginosa rumo ao mundo moderno.
No Festival de Cannes deste ano “Masaan” recebeu o Prêmio Fipresci da
crítica internacional e o Prêmio Futuro Promissor da seção Un Certain
Regard, tornando-se o primeiro filme indiano a receber dois prêmios em
Cannes desde o indicado ao Oscar “Salaam Bombay”, em 1988.
“Masaan” é o sinal mais certeiro até agora de que uma nova onda de
cineastas está conduzindo o cinema indiano em uma direção nova, mais
sintonizada com os movimentos e a linguagem do cinema global.
No início deste ano estreou “Court”, um retrato kafkiano da vida e da
justiça em um tribunal indiano, em meio a elogios da crítica. O filme
já recebeu dezenas de prêmios, incluindo dois Leões no Festival de
Veneza.
Em agosto foi a vez de “Thithi”, que tem lançamento comercial marcado
para 2016, receber dois prêmios no Festival de Cinema de Locarno. É o
trabalho de estreia de seu diretor, como também é o caso dos diretores
de “Masaan”, Neeraj Ghaywan, e “Court”, Chatanya Tamhane.
Nos últimos dez anos os diretores indianos vêm mostrando um desejo
maior de se arriscar, ultrapassando as fórmulas escapistas tradicionais.
Filmes ambientados nas regiões áridas do norte da Índia ou na
Caxemira mergulharam nas subculturas violentas do país mas se ativeram
em grande parte aos padrões da Bollywood convencional, cujos filmes se
caracterizam por incluir sequências musicais e melodrama.
As opressões banais cotidianas da vida indiana, que exigem uma
linguagem cinematográfica mais austera, têm figurado pouco nas telas. É a
lacuna que esses cineastas procuram preencher.
“Masaan” e “Court” têm características que superam Bollywood e
Hollywood, cujos blockbusters frequentemente geram imitações locais. Os
novos diretores indianos querem criar um estilo cinematográfico adaptado
ao contexto social peculiar de seus filmes.
“Como muitos filmes indianos esperam conseguir divulgação em
festivais, tenho observado que a sensibilidade e a emoção são muito
europeias”, disse Ghaywan. “Mas isso soa falso. Os indianos são mais
expressivos e emocionais, e o realismo contundente deveria incorporar
essa característica.”
Um elemento notável desses filmes é seu desejo de abraçar a
diversidade linguística da Índia, em lugar de procurar superá-la impondo
um “monolingualismo” falso, como faz a maioria dos filmes (o país tem
24 línguas).
“Masaan” alterna entre o hindi e o bhojpuri, língua falada no norte, e
“Thithi” é falado principalmente em kannada, o idioma de Karnataka, no
sul da Índia.
“Court” alterna entre o hindi, o inglês e o marathi, as três línguas
principais faladas em Mumbai, onde a história é ambientada. “Não vejo
‘Court’ como um filme marathi ou hindi”, disse Tamhane. “Para mim, é um
filme indiano.” É um contraste marcante com filmes de Bollywood que
adotam o hindi como língua.
Com pouco financiamento institucional para o cinema independente na
Índia, o sucesso de filmes como “Masaan” e “Court”, que se saíram bem em
festivais e tiveram bons resultados comerciais na Índia, muito
provavelmente vai abrir fontes maiores de dinheiro para o setor.
A recepção positiva dada aos filmes se explica por sua acolhida por
um público jovem, em ascensão social e globalizado, cansado das tramas
de Bollywood, que seguem uma fórmula constante que são movidas por um
sistema poderoso de grandes astros e pela obsessão dos estúdios por
manter os custos no mínimo.
“A situação levará tempo para melhorar”, disse Ghaywan, “mas o otimismo não deixa de ser justificado.”
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