domingo, 6 de setembro de 2009

SHANZAI





A cultura do shanzhai
Mais do que um negócio obscuro com nebulosas relações trabalhistas e a “importação criativa” de produtos, o shanzhai é uma tradição chinesa. Os primeiros eletrônicos alternativos foram criados nos anos 80, quando telejogos japoneses pareciam ser a solução para educar e divertir as crianças. Como essas máquinas eram caras demais, as empresas locais começaram a fabricar versões com acabamento simples e preços mais baixos.
Nascia assim um modelo de negócio que levava a tecnologia para a população, ignorava royalties e viraria um símbolo cultural. “O governo tomou medidas para conter a produção desses produtos, mas existe uma enorme demanda por celulares baratos no mercado interno e nos países pobres”, afirma Oliver Xu, analista-chefe do Gartner.
“Erradicar o mercado cinza acabaria com muitos empregos”, diz. Além de gerar empregos, a indústria de produtos alternativos é usada como portal de entrada para uma nova classe social, que surgiu na esteira do crescimento econômico acelerado do país. Está aí o mais genuíno DNA do shanzhai.



As damas do shanzai
Grande parte das fábricas de Shenzhen é movida pela força feminina. São jovens que migram de cidades rurais do interior da China em busca de trabalho. Outra prática comum no país é montar alojamentos precários nas próprias fábricas para que os funcionários economizem com gastos como aluguel e alimentação.
O domínio da China na fabricação de eletrônicos, fake ou não, tem entre uma das suas origens os próprios investimentos públicos. O governo injeta mais de um trilhão de dólares por ano em pesquisa e desenvolvimento nas áreas de telecomunicações, computação e eletrônicos, de acordo com relatório da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos (OCDE).
Não é por acaso que as maiores marcas do mundo tenham concentrado suas fábricas na Ásia. E menos ainda que os produtos mais brilhantes dessas multinacionais tenham ganhado versões clonadas lá mesmo. Segundo o Gartner, modelos de marcas como HiPhone, Sumsung e Nckia respondem por quase 40% do mercado chinês.
O país consome 183 milhões de aparelhos por ano e fabrica três quartos da produção mundial de celulares. Andam especulando que a Apple vai anunciar uma versão míni do iPhone? Pois a indústria do shanzhai já começa a produzir milhões de unidades de um aparelho com metade do tamanho (e o dobro de funções) do smartphone original.
Em poucas semanas, ele é vendido em Manila, nas Filipinas; em Ciudad del Este, no Paraguai; e em Feira de Santana, na Bahia. Aqui ou na China, é grande a tentação de comprar um smartphone por menos de 300 reais, mesmo sabendo que ele pode parar de funcionar poucos dias depois. O mesmo raciocínio vale para navegadores GPS, MP3 players (ou 4, ou 5 ou... 10) e outros aparelhos que no quesito preço dificilmente encontram rivais à altura nos catálogos dos grandes fabricantes.
Um dos exemplos mais gritantes são os MP10 xing ling que tomaram conta do comércio popular brasileiro. Até na Americanas.com, o maior nome do e-commerce brasileiro, os players de marcas desconhecidas ocupam cativamente as posições dos produtos mais vendidos em categorias como MP4 e MP5.








De Shenzhen à Feiraguai
Os clones de iPhone e de MP3 players percorrem um longo caminho antes de chegar às barraquinhas de camelô brasileiras. Geralmente, a jornada começa nos corredores da Feira de Cantão, realizada na cidade de Guangzhou, no sul da China. O megaevento ocupa uma área de 1 milhão de metros quadrados, com 55 mil estandes de fabricantes que oferecem desde máquinas agrícolas até peças de vestuário e, claro, eletrônicos.
“Pequenos fabricantes vendem kits personalizáveis de placas e carcaças plásticas para replicar qualquer aparelho. Eles dizem: ‘é só trazer o celular que nós copiamos’”, afirma Rafael Hu, sócio-diretor da Akasa, que fornece hardware para fabricantes como Positivo, Semp Toshiba e Itautec. Depois de receber a encomenda de um lote de réplicas do HiPhone, por exemplo, os negociantes de Cantão correm para Shenzhen, a verdadeira meca da fabricação de eletrônicos.
Espécie de Zona Franca de Manaus, a cidade tem a fama de abrigar as melhores e as piores fábricas de eletrônicos do mundo. A vocação surgiu ainda nos anos 80, quando o governo de Deng Xiaoping transformou a região na primeira Zona Econômica Especial do país.
A fascinação pelas cópias é tanta que Shenzhen tem até um parque temático com reproduções toscas de 130 pontos turísticos internacionais — com direito a um Cristo Redentor em cima de um Corcovado xing ling. É desse pitoresco cenário que saem todos os produtos de grandes marcas que levam o selo made in China, dos mais bizarros aos que têm componentes de qualidade, como o iPhone original ou o Xbox 360, da Microsoft.
Durante a abertura capitalista, nos anos 80, o governo chinês forçou as cidades a se especializar em setores produtivos específicos por meio de incentivos fiscais. Shenzhen, pela excelente estrutura portuária, logo ficou com a área dos eletrônicos, cujo foco na exportação é prioritário. Virou uma cidade onde é possível fabricar gadgets em qualquer prazo e com qualquer qualidade e quantidade.
“Na China, tudo se resolve respondendo quanto você quer pagar na fabricação do produto. Quanto maior o investimento, mais as réplicas serão parecidas com a peça original”, afirma Jean-Pierre Cecillon, diretor de vendas da Kingston no Brasil e no Cone Sul. A empresa, que é referência em pen drives e memória RAM, tem 97% da sua produção concentrada na Ásia.
O apelo da China não está apenas no baixo custo dos profissionais. “Nosso processo de fabricação é quase todo automatizado. Por isso, a mão-de-obra barata não foi o fator decisivo para escolher a China. O país nos atraiu por ter um mercado consumidor gigantesco e uma infraestrutura que se expande com velocidade”, diz Cecillon. Além disso, os produtos já saem de Shenzhen prontos para ser vendidos em qualquer lugar do mundo.
Todos os clones de iPhone testados pela INFO vieram com menus em português, embora com sotaque lusitano. As facilidades não param por aí. As etapas de testes, controle de qualidade e análise de materiais são feitas na China, antes de os produtos embarcarem nos contêineres. O problema é que, em nome da diminuição de custos e da velocidade na adoção de novidades, raramente esse processo é respeitado nos aparelhos shanzhai.
“No Brasil, só para mudar a cor de um celular temos que fazer concorrência com diversos fornecedores, pesquisar a durabilidade do material e atender a uma série de exigências da Anatel”, afirma Gilson Raeder, diretor de desenvolvimento de produto da Motorola Brasil.
“No caso, a aprovação da Anatel não depende apenas do telefone, órgãos como o CPqD e o Inpi analisam a bateria, o carregador, o manual, a embalagem, o sistema operacional, tudo”, diz. Esse processo, que pode levar até três meses, é solenemente ignorado pelos aparelhos shanzhai.
Do dual-SIM ao pero no mucho
Há todas as opções de cores, tamanhos e formatos nos smartphones shanzhai que chegam ao Brasil, mas duas características estão quase sempre presentes: a possibilidade de usar dois chips e a sintonia de TV. A função de dual-SIM, que permite usar dois números de celular ao mesmo tempo, ainda é rara nos aparelhos originais vendidos aqui. Nos clones, pode ser usada sem dificuldade, conforme mostraram os testes do INFOLAB. Após discar um número, é só escolher entre os dois botões que representam a primeira e a segunda conta de telefone. Tudo ocorre de forma transparente, independentemente da diferença de operadora entre os chips. A opção da TV é bem mais tosca. Usando sempre uma antena no estilo radinho de pilha, o sinal capturado é analógico e dificilmente mostra imagens sem chiados e chuviscos.
Além do iPhone, todos os aparelhos mais populares da Nokia, Motorola e Sony Ericsson têm suas versões cover. No caso da fabricante finlandesa, o hit são as cópias do N95, que trazem funções como tela sensível e caneta stylus, que não existem nem mesmo no modelo original. Outra característica cada vez mais presente é o uso do acelerômetro.
Os clones de iPhone trocam de música com uma chacoalhada para a frente e retrocedem com um movimento para trás. O problema é que esse remelexo não dura muito. Com acabamento frágil, os gadgets têm data de validade curta e funções que só aparecem escritas na embalagem. O visual dos aparelhos engana bem, mas é comum esbarrar com exemplos como o da câmerafone Vaic, que teria resolução de 8 MP, mas, no máximo, captura imagens com 640 por 480 pixels, como uma webcam fuleira.

Nos HiPhones, a tampa indica capacidade para guardar 16 GB, quando na verdade o aparelho traz só um cartão microSD de 1 GB. Não são raros os carregadores, baterias e fones de ouvido que apresentam falhas logo na primeira semana de uso.

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