sábado, 6 de fevereiro de 2010

Há meses os franceses estão envolvidos em um debate público centrado em sua identidade nacional e em uma possível proibição da burca, o véu islâmico. O ministro da Imigração, Eric Besson, um ex-socialista, é o homem por trás do debate agressivo, o que faz dele um dos políticos mais controversos da França.
As temperaturas estavam abaixo de zero e o céu de inverno era de um cinza gélido quando o presidente francês, Nicolas Sarkozy, chegou ao cemitério militar de Notre-Dame-de-Lorette, no norte da França, na última terça-feira. Ele foi prestar as últimas homenagens a outro francês, um homem chamado Harouna Diop, um soldado e pai de seis filhos. Nascido no Senegal, Diop tinha apenas 40 anos ao morrer no Afeganistão, em 13 de janeiro, quando insurgentes explodiram seu veículo militar blindado.
"Harouna Diop foi um francês. Harouna Diop foi um muçulmano", disse Sarkozy diante de um campo de cruzes brancas. "Ele morreu pela França."
O elogio de Sarkozy foi uma tentativa de resgate, uma manobra retórica no auge do aquecido debate que se trava na França sobre a identidade nacional. Ele divide o país há meses, causou gafes racistas e contribuiu para um clima de forte suspeita contra os muçulmanos franceses.
O debate gira ao redor dos valores da República, da nação francesa, da burqa e da questão do que causa orgulho a este país e o que é importante para ele - em suma, muitas das coisas que unem os franceses, ou uniram um dia.
O homem que provocou esse debate está de pé ao lado de Sarkozy no cemitério militar: Eric Besson, 51 anos, ministro da Imigração, Integração e Identidade Nacional. A revista "Le Nouvel Observateur" o chama de "servidor desavergonhado de seu amo", enquanto o semanário "Marianne" conclui que ele é "o homem mais odiado na França". Quanto ao presidente, chama Besson de "meu espadachim".
Besson é um político suave. Usa camisas lilás com gravatas roxas, tem o hábito de pressionar as pontas dos dedos das duas mãos enquanto fala e gosta de posar para fotos em seu escritório, entre o reboco dourado e um globo antigo. Besson, que se chama de patriota, acaba de escrever um livro, "Para a Nação", um hino literário a sua França natal, que segundo ele "amou e idolatrou" desde sua adolescência. O ministro da Imigração nasceu em Marrakech, no Marrocos, e só veio para a França aos 17 anos.

Três meses atrás, o ministro anunciou o início de um debate construtivo na "pátria dos direitos humanos". Ele estava convencido de que a propriedade do conceito de nação havia sido deixada por muito tempo para o extremista de direita Jean-Marie Le Pen e sua Frente Nacional. Não havia nada errado em lançar esse debate, que atualmente agita vários países europeus, em parte como reação ao crescente número de muçulmanos que vivem na Europa.
A discussão se concentra em seus direitos e obrigações e em sua aceitação dos valores ocidentais. A proibição da burca não está sendo discutida apenas na França, mas também na Dinamarca e na Itália, e em dezembro os suíços votaram em um referendo contra a construção de minaretes.
Mas é difícil conduzir essa discussão de maneira objetiva, especialmente porque em muitos lugares ela faz parte de uma tentativa de excluir os muçulmanos. Cidadãos, políticos e jornalistas se envolveram em discussões agressivas, e em alguns casos racistas, sobre até onde se pode permitir a visibilidade do islã na vida cotidiana da República, e quão franceses são ou deveriam ser os 5 a 6 milhões de muçulmanos que vivem na França.

No site na web que Besson criou para o debate sobre a identidade nacional, os censores logo se viram obrigados a deletar muitas mensagens xenófobas. E nos fóruns de cidadãos que o Ministério da Imigração organizou por todo o país muitos cidadãos expressaram o que chamaram de seu "medo da dominação árabe".
Em um desses fóruns, o prefeito de Marselha disse estar satisfeito com os moradores muçulmanos da cidade, mas não com o fato de eles recentemente terem marchado pelas ruas carregando a bandeira argelina, e não a francesa, depois que um clube de futebol local venceu uma partida. Mais tarde Besson pediu desculpas pela gafe do prefeito.
Durante meses, a oposição socialista acusou Besson de usar o debate sobre identidade nacional para deliberadamente escapar dos verdadeiros problemas do país: o déficit orçamentário, a montanha de dívida, o desemprego e as promessas não cumpridas de Sarkozy, que assumiu o cargo como o "presidente do poder aquisitivo". Segundo a oposição, o único objetivo da campanha de Besson é manter esses problemas prementes fora da agenda política antes das eleições regionais em março.
Essas críticas são muito familiares para o ministro. Afinal, Besson foi membro do Partido Socialista (PS), e ainda na campanha presidencial de 2007 trabalhou como assessor da candidata do partido, Ségolène Royal, escrevendo panfletos sobre Sarkozy, em que zombou dele como um "neoconservador americano com passaporte francês".
Mas então ele teve um desacordo com Royal, deu as costas ao partido, escreveu uma crítica aguda dos socialistas e, antes da eleição decisiva, desertou e ofereceu seus serviços ao adversário de Royal, Sarkozy. Ele teria ajudado Sarkozy a se preparar para o grande debate na televisão entre os dois candidatos, chegando a fazer o papel de Royal nos ensaios. Os socialistas chamam Besson de traidor desde então.

Como protegido do presidente, Besson ocupa constantemente as manchetes. Ele está em toda parte. Seguindo as pegadas de Sarkozy, que quando foi ministro do Interior fechou o campo de refugiados de Sangatte no litoral norte, em 2002, o atual ministro da Imigração mandou evacuar à força um campo de refugiados perto de Calais em setembro passado, diante de câmeras de TV e com a ajuda de forças de segurança agressivas.
Como Sarkozy, Besson é ruidoso e provocador. Ele vocifera contra os casamentos de fachada com que os imigrantes adquirem a cidadania francesa, persegue os imigrantes ilegais e registra números recordes de deportações. Ele também foi a escolha ideal de Sarkozy para dirigir a campanha de identidade nacional. Um antigo esquerdista do norte da África, nos últimos meses Besson mantém um relacionamento com uma tunisiana de 23 anos. Não poderia ser mais perfeito para o papel.
Em aparições em Paris, Besson diz que quer promover "o orgulho de ser francês". Ele está até considerando ligar a concessão da cidadania a um "pacto com a República". Mais de 350 fóruns de cidadãos foram realizados, e o site na web já atraiu mais de 55 mil comentários. Besson recentemente chamou o esforço de "um sucesso imensamente popular" - para aplauso da plateia quase exclusivamente branca, em um evento em que ele falou.
O debate sobre a identidade de Besson se fundiu com outra polêmica: a questão de se as mulheres muçulmanas devem ter permissão para usar em público o véu completo ou niqab (comumente chamado de burqa). Adversários afirmam que isso contraria os valores da República e que a burca não pertence à França secular, que já aprovou em 2004 uma lei que proíbe os lenços de cabeça islâmicos nas escolas.

Na última terça-feira, enquanto Sarkozy e Besson prestavam homenagem ao soldado muçulmano, uma comissão parlamentar francesa sobre o uso do véu completo recomendou que ele seja proibido em todas as instalações públicas. A recomendação pediu que se proíba as mulheres que usam a burca ou niqab o acesso às repartições públicas, hospitais, escritórios de serviço social, escolas e transporte público. Agora cabe ao Parlamento transformar a recomendação em lei.
Na superfície, a tarefa da comissão era determinar se a burqa é compatível com a dignidade das mulheres. Mas a questão mais fundamental é a de quanto islamismo a França secular pode tolerar. "Eu acho que temos de proibir a burqa", diz Besson, "no interesse das mulheres." Sarkozy pediu a mesma coisa em junho de 2009, quando disse: "A burqa não é bem-vinda no território da República Francesa". Sua mulher, Carla, estava sentada ao lado dele e assentiu. A comissão entrevistou mais de 150 especialistas, discutiu se usar a burca é uma exigência religiosa e até considerou o argumento de que uma proibição poderia melhorar a segurança no trânsito. Mas isso significaria incluir motociclistas e membros de outras profissões na proibição de usar "coberturas de cabeça que limitem o campo de visão".

André Gerin, o presidente da comissão e há 24 anos o prefeito comunista de Vénissieux, um subúrbio de Lyon, disse que embora os muçulmanos claramente tenham o direito de viver na França eles "terão de assimilar-se a nossa sociedade". Isto coloca o comunista Gerin na mesma página que o ex-socialista Besson. Ambos têm nostalgia de uma França que não existe mais, e muitos franceses aparentemente compartilham sua nostalgia. É como uma melodia cotidiana, escreve o jornal "Le Monde", "que sugere ao público que a França não é mais como antes, porque os imigrantes, especialmente muçulmanos com suas famílias, se estabeleceram aqui".
O sociólogo Vincent Geisser diz que "o debate da burca, juntamente com a discussão da identidade nacional, contribui para radicalizar as posições de muçulmanos moderados praticantes". Segundo Geisser, uma proibição legal da burqa poderia fazer das mulheres muçulmanas vítimas ainda maiores do que são hoje.
Parece que Besson perdeu o controle do debate e agora até os conservadores temem que a campanha de propaganda seja prejudicial. Sua promoção ao cargo de vice-líder do partido no governo, o conservador União por um Movimento Popular (UMP), também causou certas críticas. Os estrategistas do partido se perguntam se emprestar os slogans da extrema-direita não servirá apenas para mobilizar seguidores da Frente Nacional durante as eleições regionais.
Sarkozy já modificou seu tom no início do ano, quando, ao adotar um tom de estadista, pediu a união nacional e que os franceses "discutam sem nos rasgar, sem nos insultar e sem nos dividir". O presidente deverá pôr um fim, por enquanto, ao debate sobre a identidade nacional nesta quinta-feira. A polêmica sobre a proibição da burca também foi adiada para depois das eleições. Por ora, o Conselho Constitucional examinará se a proibição é até constitucionalmente aceitável. Mas resta a questão de se será possível encerrar a discussão tão rapidamente quanto ela começou, e se as relações entre muçulmanos e não muçulmanos na França sofreram danos permanentes.
"Nosso país não pode permitir a estigmatização de cidadãos franceses de fé muçulmana", disse Sarkozy junto ao túmulo de Harouna Diop. "Hoje o islamismo é a religião de muitos franceses." Eric Besson, o homem por trás da campanha de identidade nacional, teria balançado ligeiramente a cabeça em resposta aos comentários do presidente.

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