domingo, 18 de abril de 2010

A cidade de Sialkot no Paquistão produz até 60 milhões de bolas de futebol costuradas à mão durante um ano de Copa do Mundo. As empresas aqui estão ficando sem novos funcionários desde que o trabalho infantil foi abolido. Os compradores ocidentais podem ter a consciência tranquila, mas as crianças de Sialkot agora trabalham à exaustão nas olarias locais.
O vilarejo é cercado por plantações verdejantes. Chaminés vermelhas das fábricas de tijolos, com suas pontas escurecidas pela fuligem, projetam-se no céu. Prédios compridos e em ruínas são pontilhados de janelas parecidas com ameias [pequenas aberturas nas muralhas dos castelos]. Eles parecem celeiros ou depósitos de grãos.
Em uma dessas casas em Sambrial, a poucos quilômetros de Sialkot, na fronteira do Paquistão com a Índia, Shaukat está sentado numa cadeira baixa próximo de outros 20 homens. Ele tirou suas sandálias e as colocou perto da cadeira. Em março, é quente o suficiente para trabalhar descalço. Shaukat é um homem forte de 20 anos. Ele trabalha para a fábrica independente Danayal há oito anos. A Danayal produz bolas de futebol feitas à mão para as ligas profissionais.
Num canto da sala há uma velha televisão transmitindo um jogo de futebol, mas os homens não prestam nenhuma atenção, enquanto costuram e conversam. Eles acham o críquete bem mais interessante. A maioria deles nunca jogou futebol. Mas Shaukat está contente com o fato de que milhões de pessoas em todo o mundo gostam de futebol – talvez não no Paquistão, nem em toda a região do sul da Ásia, mas sim no resto do mundo. Esse amor global pelo esporte bretão foi responsável pelo sustento de Shaukat durante anos. Na entrada da fábrica há um quadro de avisos mostrando as quantias pagas. Dependendo do modelo, o empregador paga entre 55 e 63 rúpias paquistanesas por bola (US$ 0,65 a US$ 0,75). “Num dia bom, consigo fazer seis bolas”, diz Shaukat. São oito horas de trabalho. “Não é muito dinheiro”, diz enquanto força a agulha através do grosso couro sintético e costura dois pedaços juntos. Seu chefe está parado ali perto, então ele logo acrescenta: “Mas também não é pouco”. Ele recebe o dinheiro todo sábado e tem de alimentar uma família de seis pessoas com seu salário.
Em média, as pessoas de Sialkot ganham US$ 1.370 por ano, duas vezes a média nacional, graças ao setor de bens esportivos. Fabricantes de instrumentos cirúrgicos, itens de couro e instrumentos musicais também contribuem para a prosperidade da cidade. Todas as bolas e bisturis manufaturados aqui são exportados. Políticos e executivos examinaram os mercados estrangeiros e adotaram os padrões ocidentais. Cerca 500 mil pessoas moram aqui – 3 milhões considerando a zona metropolitana – e a maioria delas têm orgulho de si mesmas e de sua cidade. As ruas são melhores e os carros mais novos que nas outras regiões do Paquistão. Sialkot tirou vantagem da globalização.
Há uma montanha de bolas de futebol brancas empilhadas na sala ao lado. O material – para cada bola, são 20 retalhos hexagonais e 12 pentágonos de couro sintético, além da câmara e da linha – é fornecido pela companhia Forward Sports. Toda noite um caminhão chega para coletar as bolas confeccionadas. No momento, a Forward Sports é a maior produtora de bolas feitas à mão de Sialkot. Ela fornece para mais de 100 oficinas de costura como a Danayal. Ela vende as bolas para a companhia esportiva alemã Adidas por 5 a 10 euros por bola, ninguém aqui quer revelar qual é o preço exato. A Adidas tem contratos de fornecimento com outras companhias em Sialkot além da Forward Sports.
É um longo caminho desde as oficinas de costura em Sialkot até os campos de futebol profissionais da Europa e da América. Em primeiro lugar há os terceiros – fábricas de costura, oficinas de fundo de quintal, pessoas que trabalham por conta própria. Acrescente a isso as firmas de transporte, as alfândegas, as gigantes de artigos esportivos, o setor publicitário, as lojas de material esportivo e as lojas de departamentos. Essa cadeia transforma uma bola de 63 rúpias num produto que custa mais de 100 euros. Todos querem uma fatia. E alguém precisa pagar milhões de euros para os astros do futebol, os caros garotos-propaganda das marcas esportivas.
A demanda por bolas de futebol é enorme, especialmente nos anos de Copa do Mundo. Desde meados dos anos 80, a cidade de Sialkot tem sua própria alfândega, o que significa que os fabricantes não precisam transportar seus produtos para o porto de Karachi. Eles chamam o centro de carregamento de “porto seco”. No ano passado a cidade inaugurou um aeroporto moderno para permitir que os executivos da Adidas, Nike, Pumma and Co voassem direto para Sialkot e recebessem os carregamentos mais urgentes através de transporte aéreo.
Recentemente, entretanto, dificilmente algum executivo ocidental ousou viajar para o Paquistão, embora não tenha havido nenhum ataque terrorista em Sialkot. As gigantes esportivas têm tanto medo do terrorismo que nem chegaram a construir uma rede de distribuição no país, embora a maior parte de seus produtos sejam manufaturados aqui. Os executivos paquistaneses têm dificuldade de conseguir vistos para os Estados Unidos ou Europa. Mas os negócios continuam indo bem, dizem eles.
As fábricas de Sialkot fornecem 40 milhões de bolas de futebol por ano, e o número sobre para até 60 milhões durante os anos de Campeonato Europeu ou Copa do Mundo. Isto representa cerca de 70% da produção global de bolas de futebol feitas à mão. De acordo com a lenda, a história de sucesso de Sialkot como capital mundial das bolas de futebol começou com um homem que consertou uma bola de couro para os militares britânicos no período colonial há cerca de um século, e depois começou a fazer suas próprias bolas. Ele se chamava Syed Sahib, e a cidade tem uma rua com seu nome.
Os fornecedores paquistaneses têm desfrutado de uma boa reputação entre as empresas esportivas mundiais desde que o trabalho infantil foi oficialmente banido aqui. Crianças de até dez anos costumavam costurar as bolas de futebol até que houve uma indignação internacional contra isso. As companhias esportivas, costumadas a cultivar sua imagem com quantias imensas de dinheiro, ficaram preocupadas com sua reputação. Então elas se juntaram a defensores dos direitos humanos e fizeram pressão. Em 1997, os fornecedores paquistaneses e representantes da Unicef e da Organização Mundial do Trabalho assinaram o Acordo de Atlanta no qual o setor concordava em parar de usar mão-de-obra infantil.
Milhares de crianças perderam seus empregos da noite para o dia. Para tornar mais fácil o controle por parte das companhias esportivas, os grandes produtores proibiram as pessoas de trabalhar em casa e construíram oficinas de costura. O Paquistão tem agora a Associação Independente para Fiscalização do Trabalho Infantil (IMAC), que visita as fábricas regularmente e verifica os documentos dos funcionários. Para evitar suborno, um computador determina randomicamente a hora e o local das inspeções às fábricas. Mas várias pequenas empresas não fazem parte do sistema. “É bem provável que elas continuem empregando crianças”, diz um controlador da IMAC.
“O trabalho infantil é um assunto delicado”, diz Aziz-ur Rehman, chefe da Adidas no Paquistão. Ele diz que a Adidas desenvolveu seu próprio sistema de monitoramento. Além disso, a Forward Sports, fornecedora da Adidas, envia pessoas para as fábricas de bola para se certificar de que não há crianças trabalhando.
O caso da Saga Sports é um bom exemplo do que pode acontecer quando uma criança é pega costurando bolas de futebol hoje em dia. A Nike cancelou seu contrato com a companhia em 2006 por causa disso e a Saga, que já foi um dos maiores empregadores da cidade, está praticamente falida hoje. Os gerentes da Forward Sports, Comet Sports, Capital Sports e de pequenas empresas na cidade prestaram bastante atenção ao destino de sua concorrente.
Os pais agora mandam seus filhos para as olarias e serralherias onde ninguém está preocupado com a imagem corporativa. As famílias precisam do dinheiro para sobreviver. As companhias de material esportivo locais sabem da situação, mas querem satisfazer os desejos dos consumidores ocidentais. Afinal, as pessoas que gastam muito dinheiro em bolas de futebol querem fazer isso com a consciência tranquila. O consumidor de uma loja de esportes não percebe que agora existem meninas empilhando tijolos ao lado da fábrica de bolas Danayal.
“As crianças de dez ou doze anos estavam bem melhor aqui”, diz um gerente que pediu para permanecer anônimo. “Elas aprendiam uma função que garantia a elas uma renda para o resto da vida. Agora temos dificuldade para encontrar novos funcionários.”
Muhammad Ishaq Butt está convencido de que Sialkot irá superar a falta de trabalhadores. Em seu escritório de paineis de madeira no centro da cidade, vestindo um blazer azul com botões dourados, com sua barba grisalha curta e óculos anos 60, Butt, presidente da Câmara de Comércio de Sialkot, parece um empreendedor hanseático. “Estamos construindo uma fábrica onde as bolas serão coladas por uma máquina”, diz ele. É um projeto conjunto do município com investidores privados. Na China e na Tailândia, as bolas são produzidas exclusivamente por máquinas há muito tempo – num padrão tão alto que a Copa do Mundo de 2006 na Alemanha usou pela primeira vez uma bola de futebol que não foi feita no Paquistão, mas sim na Tailândia. O modelo “Jabulani” da Adidas para a Copa do Mundo de 2010 na África do Sul é feito na China.
Muita coisa vai mudar para os costureiros de Sialkot no futuro. “É assim que funciona a sociedade”, diz Butt. “As pessoas aprenderão a operar máquinas”. Entretanto, a demanda por bolas costuradas à mão continua muito alta e a qualidade ainda é melhor do que as bolas coladas ou costuradas por máquinas, acrescenta.
Nas grandes companhias de Sialkot, homens de jalecos brancos estão trabalhando para tornar as bolas feitas à mão ainda melhores. Eles usam computadores para medir se o produto é perfeitamente redondo. Máquinas verificam quanta água uma bola absorve na chuva, a resistência do material e se a superfície é muito escorregadia. O trabalho está compensando, dizem os pesquisadores. Uma bola feita em Sialkot será usada na final da Liga dos Campeões em 22 de maio em Madri.
Então ninguém em Sialkot deveria se preocupar, diz Butt. Fora isso, as empresas aqui aprenderam a compensar pela fatia de mercado perdida para a concorrência no Oriente longínquo, acrescenta. “Estamos fazendo cada vez mais produtos aqui.” Roupas e bolsas esportivas, por exemplo. E ele declara orgulhosamente que sua cidade chegou ao topo em outro setor: ela agora produz mais luvas do que qualquer outra região do mundo.

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