O governo
islamita conservador lançou uma campanha de "liberalização" destinada
a retirar as restrições impostas ao uso do véu islâmico em nome da laicidade
A divulgação não
autorizada no Twitter de uma foto de comissárias de bordo, no início de
fevereiro, provocou algumas turbulências na Turkish Airlines. Na imagem era
possível ver uma tripulação usando uniformes de design conservador, com camisas
de gola alta, saias largas e, em alguns casos, chapéu.
Piadas e
manifestações de preocupação inundaram a internet e a mídia nacional. A
companhia turca se apressou em explicar que versões "mais modernas"
estavam sendo estudadas e que o novo uniforme ainda não havia sido definido.
Mas os laicos
que acusam o partido islamita conservador que está no poder --o AKP (Partido da
Justiça e do Desenvolvimento)-- de "transformar o modo de vida dos
turcos" veem essa iniciativa como mais uma prova de que suas preocupações
são justificadas.
As bebidas
alcoólicas já foram eliminadas de alguns voos e há alguns meses as funcionárias
de solo passaram a ser autorizadas a usar o véu islâmico. O hijab austero à
moda turca é o símbolo da difusão dos costumes conservadores na esfera pública.
Após alguns anos
de prudência sobre a questão, algo que foi criticado duramente pelos meios mais
conservadores no final de seu primeiro mandato, o governo de Recep Tayyip
Erdogan vem retirando um a um todos os obstáculos que restringiam a
visibilidade desse símbolo religioso.
O Conselho de
Estado aboliu em janeiro uma regra que previa que o uso do véu fosse proibido
nos palácios de Justiça. Alguns dias mais tarde, o pequeno tribunal de Kadiköy,
em Istambul, teve seu primeiro episódio envolvendo o tema.
A advogada Sule
Dagli Gökkliç compareceu à corte usando seu lenço. "Eu estava nervosa. O
juiz me perguntou: "Você vai entrar na audiência assim?" Eu o lembrei
da decisão do Conselho de Estado", ela conta. O magistrado entrou com um
recurso. O ministro do Trabalho, Faruk Çelik, também pediu pelo fim de todas as
restrições aplicadas ao funcionalismo público em nome da laicidade. "A
proibição do uso do véu não é compatível nem com os direitos humanos, nem com
os princípios democráticos", ele afirmou.
Uma ampla
campanha de "liberalização" foi lançada pelo sindicato de
funcionários públicos Memur-Sen, próximo do AKP. A petição, que reuniu 12,3
milhões de assinaturas, entre elas a de Erdogan, foi submetida no dia 9 de
março ao gabinete do ministro Faruk Çelik.
"Uma
proibição que não está na Constituição não pode ser protegida pela
Constituição", disse o primeiro-ministro turco, que considera essa regra
"uma herança do golpe de Estado militar do dia 28 de fevereiro de
1997" e "um atentado aos direitos humanos". Tendo um grande
apoio eleitoral sobre o tema, o governo se prepara para autorizar o uso do véu
no funcionalismo público.
Uma certa
tolerância já se instalou nos hospitais e uma diretiva foi enviada às
universidades, que passaram a admitir as estudantes com véus a partir de 2010.
O ministro do Esporte, Ömer Çelik, quer uma maior flexibilidade para as
atletas.
Nos colégios
religiosos, que aumentaram em número nos últimos anos, as professoras podem
usá-lo, mas as alunas também. Ainda não é o caso nas escolas regulares ou no
setor privado, onde a decisão cabe a cada empresa.
Essa
visibilidade não se tornou automática quando o AKP chegou ao poder, em 2002.
Erdogan preferiu enviar suas filhas para estudar nos Estados Unidos para
escapar da proibição. As instituições turcas ainda eram um baluarte contra o
questionamento dos princípios laicos instaurados por Atatürk em 1924 e
endurecidos pelos sucessivos regimes militares.
Em 2007, o véu
de Hayrunnisa Gül quase impediu seu marido, Abullah Gül, de chegar à
presidência da República. Para os generais que por muito tempo boicotaram as
recepções oficiais no palácio de Cankaya para evitar cruzar ali com esposas de
autoridades políticas usando véus, um limite foi rompido.
O exército era
visto como um bastião laico diante "dos ataques dos islamitas". Desde
então, ele foi "dizimado" pelos processos judiciais abertos por
"complô". Dezenas de oficiais foram presos, e os autores do golpe de
Estado de 1997 foram convocados perante os juízes. O tecido acetinado que
recobre os cabelos da senhora Gül não a obriga mais a ficar fora do protocolo,
como no passado. Ela participa das visitas de seu marido ao exterior, que foi
recebido pelo rei da Suécia há alguns dias, e participa de cerimônias oficiais.
E, desde a
última recepção dada no palácio presidencial para o feriado nacional de 29 de
outubro de 2012, os militares passaram a aceitar os trajes da primeira-dama
turca.
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