terça-feira, 4 de março de 2014


http://retrothing.typepad.com/photos/uncategorized/2007/05/28/instamatic.jpg

Em 2000 Nassima sonhava em fugir do Afeganistão para poder brincar na rua, escutar música ou jogar com seu amigo Mohamed. Em 2014 Malala continua fazendo-o, em seu caso no Paquistão, para poder ir à escola. Algumas coisas mudaram no Afeganistão e no Paquistão dos taleban nos últimos anos, mas pouco para a dignidade das meninas e mulheres.
Nassima, 11, queria ser como seu amigo e poder brincar e caminhar livremente pela rua, ir ao colégio, escutar música ou soltar papagaios pelas ruas do Afeganistão e só sonhava em sair de seu país escondida em um dos tapetes fabricados por seu pai e exportados através do Paquistão. Não podia entender por que nem as mulheres nem as meninas podiam ir ao hospital quando estavam doentes, por que sua entrada era proibida.
Por esse motivo sua avó Fatuma não morreu por milagre quando tentaram interná-la com um problema no coração. Lembrava como era feliz em sua antiga escola, embora se tratasse de um edifício decrépito, sem janelas e com uma lousa que um dia e outro também caía ao chão. Queria aprender a ler porque seu pai lhe tinha dito que isso era o mais bonito que havia no mundo, que lendo se pode sonhar, se podem viver outras vidas, viajar, ser outras pessoas, e para Nassima parecia uma coisa fantástica.
Mas essa menina de Cabul pensava que "desde que esses homens barbudos e olhos febris, chamados taleban, haviam chegado ao poder ela tinha deixado de ir à escola, não podia mais brincar na rua com seus amigos, não podia ler nem aparecer na janela de sua casa".
Isso ocorreu em 2000, há 14 anos. Hoje com 24, Nassima continua sofrendo todo tipo de discriminação. Depois que os taleban perderam o poder, ela voltou à escola e a jogar com seu amigo Mohamed, com o qual acabou se casando, mas sua vida é uma luta contínua. Hoje Nassima é uma ativista dos direitos das mulheres como foi Sushmita Benerjee, uma escritora indiana casada com um afegão que em setembro passado foi assassinada com 20 tiros na porta de uma escola. Sushmita sempre foi um alvo dos taleban, por ser mulher, por se negar a usar a burqa, mas sobretudo por seus livros publicados na Índia, denunciando a situação das meninas e mulheres afegãs.
Tanto Nassima quanto Sushmita sempre se sentiram muito identificadas com Malala, do Paquistão, que agora luta em Londres para que as meninas de seu país possam ir à escola. Malala levou um tiro no rosto na saída da escola, de um grupo taleban. "Dispararam contra Malala porque a educação das meninas ameaça tudo o que eles defendem. O maior risco para os extremistas violentos no Paquistão não são os drones americanos. São as meninas com formação", escreveu Nicholas D. Kristof no "New York Times".
Depois de ser transferida para Londres para ser operada e recuperar-se fisicamente, Malala continuou lutando para que as meninas de seu país pudessem continuar estudando. No dia em que completou 16 anos, Malala se dirigiu à Assembleia Geral da ONU com força e convicção. Com a mesma que muitos anos antes, em 2000, o fazia Nassima. Diante de um auditório repleto e vestindo um sári que pertencia a Benazir Bhutto, a jovem afirmou: "Não é meu dia, e sim o de todas as mulheres e crianças que levantaram sua voz por seus direitos".
"Falo por aqueles cujas vozes não podem ser ouvidas, pelos que lutaram por seus direitos de viver em paz, seu direito à igualdade de oportunidades e seu direito de ser educados. Queridos amigos, no dia em que os taleban atiraram em meu rosto, em mim e minhas amigas, pensaram que a bala nos silenciaria, mas erraram. Aquela bala elevou centenas de vozes. O extremismo tem medo dos lápis e dos livros e do poder da voz das mulheres, por isso as matam", afirmou Malala diante do olhar surpreso, atento e emocionado de muitos diplomatas da ONU.
No ano passado, uma representação do governo afegão teve que prestar contas diante da ONU sobre a situação das mulheres. Tentaram justificar o trabalho realizado pelo governo, mas com pouco êxito. O documento falava em 167 "incidentes" que afetavam a educação, dos quais 49% foram atribuídos a grupos armados, incluindo as forças dos taleban, 25% às forças pró-governamentais e 26% a autores não identificados.
Diversos grupos armados cometeram ataques contra escolas, o que incluiu a utilização de artefatos explosivos improvisados e ataques suicidas, o incêndio de escolas e o sequestro e a chacina de professores. Vários grupos armados também foram responsáveis por atos de intimidação, ameaças contra professores e alunas e fechamentos forçados desses colégios.
Diante desses fatos, deveríamos nos perguntar o que mudou no Afeganistão e nas áreas do Paquistão dominadas pelos talebans. A resposta é pouco, muito pouco, apesar da dura guerra vivida e da quantidade de mortos que caíram pelo caminho.
As meninas e as mulheres pouco se beneficiaram da guerra, das mudanças de governos ou de que os taleban não estejam no poder. Não têm a presidência do governo, mas dominam a rua. E a pergunta que todos deveríamos nos fazer, especialmente os que têm poder, é: tanto medo das mulheres que saibam ler e escrever, que tenham formação?
O único lugar onde as meninas viram melhorar um pouco sua capacidade de ir à escola no Afeganistão foi nas grandes cidades. Cinco milhões de meninos e meninas não estão escolarizados, dos quais 37% são meninas. Insisto, isso nas grandes cidades como Cabul.
Mas o desprezo e o ódio pela mulher também chegam às agressões físicas, como ocorreu a Aisha Mohammadzai, conhecida como Aisha Bibi. Em 2009 essa jovem de 19 anos foi retirada violentamente de sua casa pelos taleban. Depois de permanecer cinco meses em uma prisão, um tribunal rural a julgou e determinou que deveria servir de exemplo para outras mulheres, e como condenação a enviou de volta a seu marido. Este a levou para as montanhas, amarrou suas mãos e seus pés e lhe disse que como castigo lhe cortaria o nariz e as orelhas. E assim o fez, deixando-a abandonada nas montanhas.
Segundo relatou o programa "Daybreak", da rede britânica ITV, depois do ataque Aisha conseguiu chegar à casa de seu avô, de onde foi transferida para um centro médico americano, e ali permaneceu por dez meses. Posteriormente foi levada a um refúgio secreto em Cabul e depois viajou para os EUA, graças à ajuda de uma organização humanitária.
Em 2010 a revista "Time" publicou a fotografia de Aisha sem o nariz, na capa de sua edição de agosto. A imagem, que foi feita pela fotógrafa Jodi Bieber em um centro de mulheres maltratadas no Afeganistão, foi escolhida a melhor do ano pelo prêmio World Press Photo. Atualmente, Aisha vive em Maryland, EUA, onde um casal cuida dela.
Mas por que aconteceu isso com Aisha? Simplesmente porque seu pai, quando a menina tinha 12 anos, prometeu dá-la a um combatente taleban como compensação por um assassinato que um membro de sua família havia cometido. Aos 14 anos já estava casada e submetida a constantes abusos, até que aos 18 tentou fugir. Essa foi a razão de sua mutilação facial.
No Paquistão, apenas 1% do orçamento é dedicado à educação (especialmente para homens), enquanto se gastam 30% em armamentos. Enquanto isso, jovens como Aisha terão de continuar sonhando e arriscando suas vidas por uma vida melhor para as mulheres.

Nenhum comentário: