terça-feira, 18 de março de 2014


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"Você está sem emprego? Não tem onde morar? Não tem nada para comer?", pergunta o anúncio online. "Venha para Fukushima". 
Esse texto sombrio que tem como público-alvo os japoneses mais pobres e foi publicado por uma empresa que está buscando funcionários para trabalhar na usina nuclear de Fukushima Daiichi, devastada por um terremoto seguido por um tsunami, é um dos mais claros indícios da busca cada vez mais problemática por pessoas dispostas a realizar a perigosa tarefa de desativar o local.
A empresa Tokyo Electric Power Co., que opera a usina e é conhecida como Tepco, não tem dado muita atenção ao problema e deixou o complexo processo de limpeza a cargo de uma mão de obra que, em geral, é mal gerida, mal treinada, se sente desmoralizada e, em alguns casos, não tem nenhuma qualificação e já cometeu alguns erros perigosos.
Ao mesmo tempo, a Tepco está investindo seus recursos em outra usina, a de Kashiwazaki Kariwa, cujas atividades a empresa pretende reiniciar este ano como parte dos esforços do governo japonês para voltar a utilizar a energia nuclear, três anos após o segundo pior desastre nuclear do mundo. Alguns membros do conselho do órgão regulador do setor nuclear do Japão criticaram a medida.
Em Fukushima, a medida se traduziu em empregos mais escassos e com salários mais baixos, o que afugentou os trabalhadores qualificados. Por isso, segundo informaram operários e outras pessoas, só ficaram em Fukushima funcionários que geralmente são contratados por empresas de recrutamento aventureiras que têm pouco conhecimento técnico e sobre as normas de segurança --isso sem falar na preocupação quase inexistente em relação à contratação de pessoas desesperadas. A polícia e ativistas sindicais dizem que algumas das empresas de recrutamento mais agressivas mantêm laços com a máfia local.
Autoridades do órgão regulador do setor nuclear, prestadores de serviços e mais de 20 trabalhadores que atuam ou atuaram no local e foram entrevistados nos últimos meses dizem que a deterioração das condições de trabalho em Fukushima é a principal causa de uma série de grandes vazamentos de água contaminada e de outros erros constrangedores que já prejudicaram o meio ambiente e, em alguns casos, colocaram trabalhadores em perigo. Na pior das hipóteses, temem os especialistas, esses trabalhadores vulneráveis poderiam provocar um derramamento maior ou outro vazamento de material radioativo.
"Há uma crise de mão de obra na usina", disse Yukiteru Naka, fundador da Tohoku Enterprise, prestador de serviços e ex-engenheiro da usina, que trabalhava para a General Electric. "Nós somos obrigados a fazer mais com menos, como bombeiros que são orientados a usar menos água apesar de o fogo ainda estar queimando".
Essa crise ficou especialmente evidente durante uma manhã escura de outubro do ano passado, quando um grupo de trabalhadores temporários foi enviado para remover as mangueiras e válvulas do local como parte de uma atualização do sistema de purificação de água da usina, que já deveria ter sido realizada há muito tempo.
De acordo com documentos apresentados às autoridades reguladoras pela Tepco, a equipe recebeu apenas um briefing de 20 minutos do seu supervisor e não recebeu nenhum diagrama sobre o sistema que deveria ser consertado nem instruções sobre os procedimentos de segurança --tipo de procedimento que, segundo um ex-supervisor da usina, é inconcebível. Pior ainda: os trabalhadores não foram avisados de que a mangueira próxima daquela que eles deveriam remover estava cheia de água contaminada com césio radioativo.
Enquanto os homens caminhavam desajeitadamente vestidos com seu volumoso traje de proteção, o supervisor deles, que é responsável por desempenhar múltiplas tarefas no local, saiu para verificar outra equipe. Os trabalhadores escolheram a mangueira errada para remover e uma torrente de água radioativa começou a vazar. Em pânico, os homens colocaram as mãos enluvadas na água para tentar interromper o vazamento, espalhando a água sobre si mesmos e sobre outros dois trabalhadores que correram para ajudá-los.
Apesar de os trabalhadores terem sido expostos de maneira significativa à água contaminada, Shigeharu Nakachi, especialista que estuda os efeitos da poluição sobre a saúde das pessoas, disse que o incidente não foi suficiente para causar doenças relacionadas à radiação. Ainda assim, ele disse que exposições como essa devem "deve ser evitadas a todo o custo".
A Tepco se recusou a informar o tipo de experiência que esses trabalhadores possuem para desempenhar essas tarefas, mas, de acordo com documentos apresentados às autoridades reguladoras, a empresa que os recrutou assinou um contrato relacionado a esse trabalho apenas uma semana antes do vazamento. A Tepco também se recusou a dizer se a prestadora de serviços contratou os trabalhadores por meio de empresas de recrutamento, prática que geralmente é considerada ilegal em usinas nucleares, ainda que seja amplamente aceita.
Em resposta a perguntas enviadas por escrito, a Tepco disse que "não está em posição de comentar sobre as práticas de contratação" de suas prestadoras de serviços.
A Tepco também se recusou a divulgar um relato detalhado sobre um vazamento recente ocorrido na usina --o pior vazamento em seis meses--, que foi registrado quando os trabalhadores que enchem os tanques de armazenamento de água contaminada desviaram essa água remotamente para o tanque errado. Mas mesmo as poucas informações disponíveis indicam que houve uma confusão por parte dos trabalhadores.
Eles ignoraram os alarmes que alertaram para o transbordamento do tanque devido ao fato de muitos desses tanques estarem próximos de sua capacidade máxima de armazenamento e, por isso, os alarmes disparam o tempo todo. Ninguém notou que o nível de água do tanque que deveria estar recebendo a água não estava aumentando.
"Esse foi um erro extremamente básico", disse Toyoshi Fuketa, encarregado da Autoridade Reguladora do Setor Nuclear, durante uma audiência recente. "Se um alarme de incêndio disparasse em sua casa, você ficaria preocupado, o que dirá em uma usina nuclear".
O vice-presidente da área de energia nuclear da Tepco, Masayuki Ono, explicou posteriormente que "não nos ocorreu ir até o local para verificar a situação".
No cerne dos problemas da usina está o sistema de contratação do setor nuclear, que utiliza várias empresas intermediárias. Segundo os críticos vêm alertando há muito tempo, esse sistema permite que as operadoras de grande porte responsáveis pela administração das usinas nucleares se distanciem dos problemas surgem nessas plantas. De acordo com esse sistema de contratação, prestadoras de serviços são contratadas e dividem o trabalho com várias outras subcontratadas. Na parte inferior dessa cadeia, submetidos às tarefas mais insalubres, estão os chamados "ciganos nucleares" – operários itinerantes atraídos pelos bons salários que, em geral, são pagos por esse setor.
O acidente só serviu para ampliar os problemas desse sistema de contratação. De acordo com os registros da empresa, os trabalhadores temporários da Fukushima Daiichi estão expostos, em média, a radiações mais de duas vezes superiores àquelas a que são submetidos os funcionários fixos da Tepco. Segundo afirmam muitas pessoas, esse sistema de subcontratação, no qual as tarefas são divididas entre várias empresas, também faz com que haja relativamente pouca supervisão por parte da Tepco.
Em uma entrevista recente, uma porta-voz da Tepco disse que a empresa avalia regularmente as empresas terceirizadas e exige que elas forneçam a seus trabalhadores uma aula sobre noções básicas de radiação. (A porta-voz negou as acusações generalizadas de fraude feitas por alguns trabalhadores.)
Mas, em uma entrevista coletiva concedida no mês passado, o chefe do órgão regulador do setor nuclear, Shunichi Tanaka, disse: "há uma estrutura de subcontratação que permite que até mesmo os funcionários das empresas terceirizadas ou quarterizadas trabalhem no local, e a Tepco não tem uma visão clara sobre o que está acontecendo no local".
Naka, o prestador de serviços que mencionou a crise de mão de obra em Fukushima, disse que muitos de seus melhores engenheiros – incluindo aqueles que combateram as explosões e os incêndios nos primeiros dias da crise – ou pediram demissão ou não podem trabalhar na usina por já terem alcançado os limites legais de exposição à radiação durante o período de um ano.
Yoshitatsu Uechi é uma das pessoas que se apresentou após a divulgação de anúncios que visavam contratar trabalhadores mais experientes. Ex-motorista de ônibus e trabalhador da construção civil, Uechi nunca havia trabalhado em uma usina nuclear.
Ele recebeu cerca de US$ 150 por dia para desempenhar uma das funções mais urgentes da planta: construir tanques para armazenar enormes quantidades de água contaminada no local. Segundo Uechi, os dias na usina eram bastante corridos e, em um dado momento, a prestadora de serviços para qual ele trabalhava pediu para que ele continuasse impermeabilizando as junções dos tanques, apesar da chuva e da neve que faziam o impermeabilizante escorregar.
Ele acredita que esse tipo de trabalho desleixado comprometerá os tanques no futuro. Desde então, alguns desses tanques já vazaram.
"Eu falei várias vezes sobre os problemas nos tanques, mas ninguém quis me ouvir", disse Uechi, pai de quatro filhos, que diz que trocou Okinawa e sua economia em recessão por Fukushima para proporcionar uma vida melhor para seus filhos. Segundo ele, os trabalhadores da usina quase nunca viam os gestores da Tepco durante o tempo que passaram trabalhando lá.
Uechi disse que transmitiu suas preocupações não apenas para seus chefes imediatos, mas também para a Tepco. (Questionada sobre as denúncias, a Tepco disse que não poderia falar sobre trabalhadores individuais devido a questões relacionadas à privacidade.)
A Tepco prometeu aumentar os salários dos funcionários para compensar a natureza arriscada e instável do trabalho. Apesar da promessa, os trabalhadores que jantavam em um dormitório próximo da usina se mostraram céticos, especialmente em relação ao pagamento extra anunciado pela empresa.
"Após as várias prestadoras de serviços de todos os níveis tirarem sua parte do bolo, não resta muito mais dinheiro para nós", disse um trabalhador de 40 e poucos anos, enquanto ele e dois colegas faziam uma refeição simples, composta por frango, berinjela e arroz e regada a cerveja e uísque.
Todos os homens que trabalham no local – que temem ser demitidos caso seus nomes sejam divulgados – foram alojados em pequenos quartos equipados com uma cama e uma mesa. A área ao redor do dormitório é quase que praticamente deserta, uma vez que muitas pessoas se recusaram a retornar ao local após o acidente.
Os trabalhadores dizem que há pouco para fazer à noite a não ser assistir TV, jogar roleta em um pequeno centro de jogos e beber. Uma loja que fica dentro de da "J-Village" – a base de Tepco fora da usina – vende cerveja, uísque e saquê. De acordo com vários relatos, o alcoolismo é galopante no local, e um trabalhador disse que ele e seus colegas às vezes vão trabalhar de ressaca.
As empresas de recrutamento, que enfrentam dificuldades para manter os três mil trabalhadores na usina – em comparação aos 4.500 funcionários da usina de Kashiwazaki-Kariwa –, estão ficando desesperadas. Geralmente afugentadas das áreas urbanas – onde os trabalhadores diaristas e os moradores de rua se concentram – pelos ativistas dos sindicatos, as empresas de recrutamento têm cada vez mais divulgado seus anúncios de recrutamento online e deixado claro que o nível das vagas é baixo.
Um anúncio, que divulgava uma vaga envolvendo o monitoramento de radiação, informava: "você precisa ter bom senso e ser capaz de manter uma conversa".
Embora não tenha ficado claro se todos os trabalhadores contratados viviam nas ruas antes de chegarem à usina, os funcionários e outras pessoas familiarizadas com eles dizem que muitos estavam em situação muito precária antes de serem contratados.
"Estamos falando de pessoas que, basicamente, ganham apenas para comer e arcar com as necessidades mais básicas", disse Hiroyuki Watanabe, membro da câmara municipal de Iwaki, cidade vizinha de Fukushima.
Um trabalhador que se recusou a revelar seu nome disse que estava numa situação tão precária que acabou ficando sem-teto ao perder seu emprego como faxineiro cuja função era remover lama contaminada das botas dos trabalhadores. Outro, contratado para verificar se havia rachaduras nos reatores da usina, disse que chegou ao local após perder seu emprego em uma fábrica e ser despejado de casa depois de terminar o relacionamento com uma namorada.
 A empresa de recrutamento que o contratou, chamada Takahashi Kensetsu, não pediu suas referências.
 Ele diz que, na maior parte das vezes, não tinha certeza do que estava verificando nos reatores e que recebeu poucas explicações sobre os potenciais perigos associados ao trabalho. Após seu pagamento ter atrasado e a empresa ter negado pagar horas extras, ele pediu demissão. Desde então, ele conseguiu receber alguns salários atrasados com a ajuda do escritório local que fiscaliza as normas trabalhistas.
 Mas, a essa altura, a Takahashi Kensetsu já havia encerrado suas atividades – latas de cerveja vazias e gibis podiam ser vistos espalhados dentro de seus escritórios vazios durante uma visita recente –, e, por isso, os defensores dos direitos dos trabalhadores conseguiram recuperar o dinheiro acionando a prestadora de serviços que contratou a empresa de recrutamento. A Takahashi Kensetsu não pode ser encontrada em um registro oficial de empresas locais e as várias ligações para o número indicado no anúncio publicado pela companhia não obtiveram resposta.
 Outras prestadoras de serviços de Fukushima e ativistas sindicais dizem que a Takahashi Kensetsu é afiliada à Inagawa-kai, uma das maiores organizações do crime organizado do Japão, ou yakuza. Trabalhadores, prestadoras de serviços e advogados dizem que a yakuza está envolvida há muito tempo no fornecimento de funcionários para as usinas nucleares – e pelo menos uma prestadora de serviços penalizada devido a abusos relacionados às leis trabalhistas em Fukushima foi identificada pela polícia como tendo laços com a yakuza.
 "A Tokyo Electric não tem ideia de quem realmente está realizando o trabalho no local", disse Takeshi Katsura, que ajudou o trabalhador receber seus salários atrasados. "É uma espécie de vale tudo".

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