sábado, 10 de janeiro de 2015


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La Goutte d'Or é um dos bairros parisienses com maior população muçulmana. Fica ao pé da colina de Montmartre, lá onde se produzia um vinho de gotas douradas que deu nome a esse local e Zola ambientou algum de seus romances.
Neste dia cheio de más notícias e de chuva pegajosa, Mustafah foi, como todas as tardes, à oração das 15 horas. Os acontecimentos da véspera continuam inquietando esse jovem de origem magrebina.
"Não gostamos nada do que aconteceu. Nossa religião não diz isso", explica, antes de desaparecer nos corredores do Instituto de Culturas do Islã, centro criado pela prefeitura de Paris que oferece cursos de árabe, berber e turco, além de um espaço para exposições, casa de banhos, salão de chá e sala de orações.
Ele se refere a um verso da quinta sura do Corão: "Quem mata uma pessoa sem que tenha cometido um crime ou semeado a corrupção na Terra, é como se tivesse matado toda a humanidade".
Virando a esquina, aparece Hassan. Está na França há quatro décadas, três delas dirigindo um açougue "halal" (que segue o ritual islâmico) neste bairro multicultural. "É uma matança sem motivo. Neste país as pessoas podem se expressar livremente. Pode ser que eu não goste da sua opinião, mas digo isso com palavras, e não com sangue", afirma o açougueiro, que jura que o bairro continua chocado pelo que aconteceu na quarta-feira. "O problema é que alguns fazem isso, mas todos nós pagaremos."
Sua preocupação parece ser amplamente compartilhada. As associações de muçulmanos franceses temem que o clima de islamofobia reinante - 73% dos franceses têm uma "imagem negativa" dessa religião, segundo uma pesquisa de 2013 - seja acentuado pelos assassinatos de 7 de janeiro.
Acabarão sendo suas vítimas colaterais? "Já estamos sendo", responde Houria Bouteldja, a porta-voz dos Indígenas da República, coletivo antirracista que incita a França a assumir sua herança colonial, referindo-se aos três ataques contra mesquitas registrados ontem.
"A islamofobia já existia na França em nível cotidiano e institucional. Esse atentado só fez dar asas e pretextos para manifestar-se de forma ainda mais descomplexada."
Uma franco-argelina de 40 anos, Bouteldja entrou na militância depois do 11 de Setembro, em relação ao qual hoje observa muitas semelhanças. "Assim como na época, voltamos a ser todos culpados. Que exijam que nos desvinculemos desse atentado é um insulto à comunidade muçulmana. Para nos dessolidarizarmos, teríamos que ter sido solidários em algum momento", denuncia a porta-voz, alertando contra "os que instrumentalizam a tragédia para beneficiar a agenda política da extrema-direita".
Elsa Ray tem 28 anos e se converteu ao islamismo já adulta. Em sua relação com seus concidadãos, observou um antes e um depois. "Já era delicada a questão, mas quando coloquei o véu vi como mudou o olhar dos demais", explica Ray, que é porta-voz do Coletivo contra a Islamofobia, associação antirracista conhecida pela contundência de seus atos e comunicados.
Desta vez, porém, são partidários de apelar à unidade e ao comedimento. "As vítimas colaterais do atentado não são os muçulmanos, mas a França inteira. É preciso evitar as amálgamas e a divisão. Esse será o principal desafio para os políticos e a mídia", opina.
Na outra margem do Sena, as instituições que representam os muçulmanos franceses se expressam no mesmo sentido. O moderado Dalil Boubakeur, reitor da Grande Mesquita de Paris, qualificou o atentado como "um ato de barbárie".
"É uma declaração de guerra estrondosa. Os tempos mudaram. Entramos em um novo período desse confronto", afirma Boubakeur, que também preside o Conselho Francês do Culto Muçulmano, criado em 2003 como interlocutor da população islâmica junto às autoridades e o encarregado de coordenar a construção de mesquitas e a formação dos religiosos franceses.
"Mais que nunca, os valores da República, isto é, liberdade - incluindo a de expressão -, igualdade e fraternidade, devem ser nosso bem comum", completou a Reunião de Muçulmanos da França, cujo presidente, Anouar Kbibech, assumirá em junho a frente desse Conselho.
Para todos eles, seria o caso de impedir a queda na "armadilha política preparada pelos terroristas", como afirma Robert Badinter, ministro da Justiça no tempo de François Mitterrand, que em 1981 prescreveu a pena de morte que hoje alguns radicais pretendem desenterrar. "Esperam que a ira e a indignação se traduzam na expressão de rejeição e hostilidade contra todos os muçulmanos da França", declarou.
O escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, por sua vez, publicou ontem sua análise nas colunas de uma edição especial do jornal "Le Monde" intitulada "O 11 de Setembro francês". "Não é um desvario de alguns valentões, mas uma vontade radical e feroz de impedir que os muçulmanos pratiquem sua religião em terra laica (...) para transformá-los em inimigos da França", declarou o escritor marroquino.

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