O Estado Islâmico usa o terror para impor a obediência e amedrontar seus inimigos.
A facção tomou territórios, destruiu antiguidades, massacrou minorias,
converteu mulheres em escravas sexuais e crianças em assassinas.
Porém, seus representantes parecem ser imunes ao suborno. Nesse quesito,
pelo menos, o EI supera os corruptos governos sírio e iraquiano, dizem
especialistas e moradores das regiões sob sua égide.
"Você pode viajar de Raqqa a Mossul e ninguém ousará barrar sua
passagem, mesmo que você esteja levando US$ 1 milhão no carro", disse
Bilal, que vive em Raqqa, considerada a capital do EI na Síria. Por
medo, ele pediu para ser identificado apenas por seu primeiro nome.
"Ninguém teria coragem de roubar um dólar que fosse."
O Estado Islâmico inicialmente funcionou exclusivamente como organização
terrorista. Porém, ao confiscar territórios, passou também a governar.
Com isso, a facção levou relativa estabilidade a uma região assolada
pela guerra e pelo caos, preenchendo o vácuo deixado por governos
falidos e corruptos que, como o EI, também empregavam a violência contra
os cidadãos, com prisões, torturas e detenções.
Hoje, nas regiões sob seu domínio, o Estado Islâmico emite documentos de
identidade para residentes, promulga diretrizes de pesca para preservar
os estoques de peixes e decreta que carros precisam levar ferramentas
para emergências.
Essa transição pode obrigar o Ocidente a reavaliar sua abordagem militar
contra a facção, ainda que notícias recentes apontem no sentido
contrário, com Turquia e EUA planejando uma zona no norte da Síria livre
do EI.
Cresce a convicção de que uma estratégia exclusivamente militar, sem
conciliação política que ofereça uma autoridade alternativa aos sunitas
insatisfeitos, não será o suficiente para derrotar o Estado Islâmico.
Isso acontece em boa parte porque muitos sunitas nos dois países que
vivem sob o domínio da milícia não enxergam nenhuma alternativa viável.
Os sunitas no Iraque continuam em grande medida hostis ao governo
central, controlado por xiitas. Quanto à Síria, o ditador Bashar
Al-Assad preside sobre uma guerra civil que já deixou mais de 200 mil
mortos.
"Falando francamente, tanto o regime quanto o EI são sujos", comentou
Ahmed, proprietário de uma loja de antiguidades que recentemente fugiu
para Raqqa para escapar de ataques aéreos em áreas próximas à cidade. No
entanto, disse ele, o Estado Islâmico "é mais aceitável aqui em Raqqa".
Ahmed, que por medo de represálias informou apenas seu primeiro nome,
também já viveu sob o controle do Exército Livre da Síria (ELS), o grupo
rebelde que se insurgiu em 2011 para combater o governo sírio. Para
ele, o ELS "é como o regime. Ambos são ladrões."
De acordo com ele, a vida sob o EI pode ser brutal, mas, para quem evita
entrar em atrito com os líderes do grupo, pode ser mais estável. "Aqui
eles implementam os regulamentos de Deus", disse Ahmed. "O assassino é
assassinado. O adúltero é apedrejado. O ladrão tem suas mãos cortadas."
John E. McLaughlin, que foi vice-diretor da CIA entre 2000 e 2004,
disse: "Me ocorreu recentemente que, somando tudo, é possível que esses
caras vençam".
É uma ideia controversa, ele explicou, porque a brutalidade extrema do
grupo alimentou a ideia de que seu fim é inevitável, já que ele é tão
perverso. "Mas o mal nem sempre é derrotado", disse.
No território do Estado Islâmico, a violência do grupo é vista sob outra
ótica, já que os iraquianos convivem com a guerra há mais de dez anos.
Hoje há a impressão de ordem e as ruas estão mais limpas. Pode ser um
critério pouco exigente, mas é uma realidade, em meio a anos de guerra e
anarquia.
O analista Hassan Hassan, estudioso do Estado Islâmico, comentou que a
"lógica da selvageria" impera na região. Se as pessoas evitam qualquer
sinal de dissensão, segundo ele, conseguem levar suas vidas. "Elas se
sentem vivendo em um Estado que funciona."
Um estudo publicado na revista "Foreign Affairs" tratou do sistema
jurídico adotado pelo grupo, que ainda está em evolução e é baseado numa
interpretação austera da lei islâmica. Andrew F. March, professor de
ciência política na Universidade Yale, e Mara Revkin, pós-graduanda na
mesma universidade, escreveram no artigo que, com o tempo, o EI "pode se
tornar um Estado cada vez mais 'normal', no qual a simplicidade de
normas e instituições tiradas da história islâmica primitiva dê lugar à
administração burocrática e a leis positivas."
Para McLaughlin, é difícil imaginar o Estado Islâmico tornando-se um
Estado legítimo, com passaportes e aeroportos operantes. "Mas não é
inconcebível."
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