domingo, 5 de dezembro de 2010

Depois de cinco meses numa ala quase abandonada do Hospital Psiquiátrico de Hepu, Yang Jiaqin não sofre mais alucinações terríveis. Ainda assim, sua mulher não ousa mencionar crianças, nem mesmo seus filhos, por medo de que isso desperte os demônios que o possuíram na última primavera.
Numa tarde quente e ensolarada de abril, Yang saiu correndo de sua casa no vilarejo rural próximo à fronteira com o Vietnã, carregando um facão de cozinha. Ele cortou dois alunos da pré-escola, ferindo ambos gravemente, e abriu a garganta de um menino da segunda série, abandonando-o à morte no chão. E então ele continuou. Quando os policiais conseguiram capturá-lo e controlá-lo, ele já havia cortado mais duas pessoas até a morte.
As famílias das vítimas concentraram sua raiva contra a polícia. Três dias antes, Yang havia atacado um vizinho na cabeça com um machado, mas não foi preso.
“Eles são totalmente responsáveis por isso”, diz Wu Huanglong, pai do menino da segunda série. “Eles não nos protegeram.”
Mas os médicos de Yang veem uma falha maior. Apesar de sinais claros de esquizofrenia, Yang havia recebido cuidados médicos por apenas um mês nos últimos cinco anos.
“Se ele tivesse recebido medicação e tratamento, sua doença não teria se desenvolvido”, diz Chen Guoqiang, médico chefe do hospital psiquiátrico. “Se ele tivesse sido capaz de controlar suas alucinações, não teria matado ninguém.”
Faz quase 35 anos desde a Revolução Cultural, quando as doenças mentais foram declaradas uma ilusão burguesa, e muitos hospitais mentais foram fechados e os doentes tratados com leituras do comandante Mao. O tratamento psiquiátrico ressurgiu desde então. Mas a saúde mental continua sendo uma fraqueza da medicina, desesperadamente em falta de financiamentos, médicos e estima.
É frequente que a resposta oficial às doenças mentais seja a negligência. As autoridades governamentais já abaladas por um ataque no mês anterior, em que oito crianças foram esfaqueadas até a morte, lançaram a censura sobre o incidente de Xichen para evitar que ele seja copiado ou incite mais indignação.
Pelo menos três entre seis homens que atacaram perto de escolas este ano deixaram 21 mortos e antes disso pareciam perturbados ou suicidas, de acordo com notícias. Mas na mais alta declaração sobre as mortes, o primeiro-ministro Wen Jiabao disse apenas que a China precisava resolver as “tensões sociais” subjacentes aos ataques.
Yan Jun, diretor da divisão de saúde mental do Ministério da Saúde, recusou repetidos pedidos de entrevista. O ministro disse numa declaração que o governo estava “continuamente fortalecendo” tanto seus recursos quanto seus profissionais para fornecer cuidados à saúde mental.
Mas o caminho é longo. Só um entre 12 chineses que precisam de cuidados psiquiátricos passa por uma consulta, de acordo com um estudo feito no ano passado pela revista britânica de medicina The Lancet. A China não tem nenhuma lei nacional de saúde mental, pouca cobertura para cuidados psiquiátricos por parte dos planos de saúde, quase nenhum cuidado nas comunidades rurais, poucas camas para pacientes internados, poucos profissionais e uma estrutura burocrática fraca para a saúde mental, dizem especialistas chineses na área.
O próprio escritório de saúde mental do Ministério da Saúde, estabelecido há quatro anos, resume-se a três pessoas. Yan, o diretor, é especialista em saúde pública, e não um psiquiatra.
De tempos em tempos, a mídia da China declara que uma lei nacional de saúde mental está prestes a ser adotada. O primeiro esboço foi escrito há meio século. Questionado sobre quantas revisões ela já passou, Ma Hong do Instituto de Saúde Mental da Universidade Peking diz: “incontáveis”.
A maioria dos hospitais psiquiátricos são inviáveis financeiramente, diz Yu Xin, que dirige o Instituto de Saúde Mental da Universidade Peking. Um deles, na província Hubei, abriu uma fábrica de caias nos anos 90 para continuar de pé. A estrutura de impostos é tão absurda, diz ele, que os hospitais podem cobrar mais por diagnósticos computadorizados baseados no preenchimento de formulários do que por sessões com psiquiatras de verdade.
“O governo não quer gastar dinheiro para tratar essas pessoas, então ele simplesmente as devolve para suas famílias”, diz Huang Xuetao, advogado de saúde mental e um dos autores do relatório.
Deixados com seus próprios recursos, alguns familiares recorrem a soluções desumanas. Em 2007, He Jiyue, um psiquiatra do governo, descobriu um homem de 46 anos trancado atrás de uma porta de metal numa sala malcheirosa de uma casa na província rural de Hebei. O homem era mentalmente doente, disseram os pais idosos. Eles o haviam prendido há 28 anos depois que ele atacou o tio.
Nos últimos três anos, funcionários de saúde mental resgataram 339 pessoas cujos parentes eram pobres demais, ignorantes ou tinham vergonha de buscar tratamento. Alguns, acorrentados em abrigos no quintal, eram “tratados como animais”, disse o Dr. Liu Jin, do Instituto de Saúde Mental da Universidade de Peking.
A falta crônica de médicos e instituições faz com que o cuidado que exista seja limitado. A média da China é de apenas um psiquiatra para cada 83 mil pessoas – doze vezes menos do que a proporção dos Estados Unidos – e a maioria não tem formação universitária em nenhuma especialidade, quanto menos em saúde mental, disse Ma.
“Os psiquiatras profissionais na China são como os pandas”, diz Zhang Yalin, diretor-assistente do Instituto de Pesquisa em Saúde Mental da Faculdade de Medicina Universidade Centro-Sul. “Há apenas poucos milhares de nós.”
A imagem de fundo do poço da psiquiatria entre a comunidade médica desestimula os estudantes a adotarem a profissão. Dai Jun, estudante de medicina de 24 anos em Wuhan, no centro da China, diz que estudou psiquiatria quando se inscreveu na Universidade de Medicina Nanjing há seis anos porque era a única especialidade com vaga. Como interno, ele percebeu que os psiquiatras não eram tratados ou reconhecidos como os demais médicos.
“As pessoas pensam: 'ah, você está constantemente rodeado de gente louca. Talvez você mesmo vá enlouquecer, ou já seja louco. É por isso que quis fazer isso”, diz Dai.
Na primeira oportunidade que teve, ele mudou para ortopedia.
Embora as pesquisas sejam escassas, uma enquete recente do Ministério da Saúde sugeriu que a necessidade por mais especialistas está crescendo rapidamente. O estudo descobriu que a incidência de doenças mentais aumentou mais de 50% de 2003 a 2008. Embora parte do aumento deva-se a uma maior conscientização e relato de casos, Ma argumenta que a incidência de doenças relacionadas ao estresse como a depressão e a ansiedade aumentou.
“A sociedade chinesa está mudando muito rápido para que as pessoas se ajustem a ale”, diz ela.
O governo prometeu recentemente investir mais em cuidados com a saúde mental, principalmente derramando bilhões de dólares em hospitais psiquiátricos novos e reformados. Muitos hospitais psiquiátricos têm mais de um século de existência e se localizam – propositalmente – longe das cidades. A China acrescentou mais 50 mil camas em hospitais psiquiátricos entre 2003 e 2008. Mas é preciso mais do que isso: o Tibete, região quase três vezes maior do que a Califórnia, não tem nenhuma instituição psiquiátrica, diz o Instituto de Saúde Mental da Universidade Peking.
Como a maior parte da China rural, Xizhen, no sul de Guangxi, uma das províncias mais pobres da China, é isolada de serviços. Aqui, várias centenas de moradores cuidam de plantações de cana de açúcar e mandioca, tirando água de poços e cortando madeira para combustível. Pessoas sem treinamento, que se auto-intitulam médicos, cuidam da maior parte das necessidades médicas. O hospital mais próximo fica a uma hora de carro dali.
Yang Jiaqin era funcionário da saúde local. Embora nem ele nem sua mulher, Wen Zhaoying, tivessem treinamento além do colegial, os dois forneceram cuidados durante anos em uma minúscula clínica em frente à escola primária de Xizhen. Há cinco anos, diz Wen, tornou-se óbvio que seu marido era quem precisava de tratamento. Sempre tenso e com medo, ele se tornou obcecado com a ideia de que as pessoas o estavam perseguindo, diz ela.
Parentes enviaram Yang para um hospital psiquiátrico próximo. Os administradores do hospital disseram que cinco médicos atendem a toda uma região de mais de 1 milhão de pessoas. Lá, disse ela, um psiquiatra prescreveu um remédio que ajudou a acalmar seu marido. Ainda assim, os episódios ficaram mais severos.
Médicos do hospital psiquiátrico de Xangai diagnosticaram sua condição como esquizofrenia, administraram drogas antipsicóticas e, um mês depois, liberaram-no. Os familiares disseram que aquele foi o último encontro de Yang com um profissional de saúde mental.
Na primavera passada, Yang, 40, tinha medo de sair de sua casa de adobe mal iluminada.
“Tudo o que ele fazia era ficar em casa e chorar”, diz Wen.
Em 9 de abril, os demônios dentro dele tomaram o controle.
Naquela noite, Yang derrubou a porta de madeira de seu vizinho de 63 anos e o atacou com um machado na cabeça. No hospital onde os médicos deram pontos no ferimento do vizinho, o chefe da polícia local disse a ele: “Quando pessoas loucas machucam alguém, não há nada que possamos fazer.”
Wen disse que começou a tomar providências naquele fim de semana para colocar seu marido num hospital. A mãe de Yang, de 74 anos, Pei Renyuan, disse que sei filho alertou-a que se mataria e que “levaria todos junto com ele”. O irmão mais novo de Yang ficou encarregado de observá-lo.
Na tarde da segunda-feira, Wu Junpei, um menino entusiasmado de 8 anos que adorava desenhar, cantar e praticar ginástica, deixou a escola com amigos, cortando caminho como de costume pela casa de Yang em direção à sua, a dez minutos dali. Yang pulou no meio do caminho com um facão de cozinha e cortou o menino, que fugiu. Então ele se voltou para Junpei, cortando seu braço e pescoço rapidamente. Ao sair correndo da casa, Yang matou uma mulher de 70 anos que fabricava fogos de artifício, e um homem que assistia uma novela em seu sofá. Ele cortou a esposa do homem e uma menina que tirava água do poço.
A polícia, que ignorou o ataque anterior de Yang rapidamente, entrou em alerta de repente. A irmã de 20 anos de Junpei disse que os policiais foram até o hospital naquela noite, enrolaram o corpo de Junpei num lençol e saíram com ele num carro, ignorando os gritos de protesto.
O governo da província ainda precisa liberar o corpo, disse Wu. Os moradores dizem que o motivo provável da situação é que Wu se recusa a assinar uma declaração dizendo que ninguém é culpado pela morte de seu filho em troca de uma indenização de cerca de US$ 19 mil.
Chen, médico chefe do hospital psiquiátrico, diz que o ataque de Yang ocorreu porque “ele nunca esteve sob cuidado sistemático”. Sua família, diz ele, “não levou sua doença suficientemente a sério.”
Mas ele também disse que seu próprio hospital às vezes libera pacientes mentais simplesmente porque as famílias não conseguem pagar o tratamento.
“O governo precisa investir mais para que possamos cuidar de todos os pacientes que precisam de tratamento, independente de eles terem uma família que possa pagar ou não”, diz ele.
Chen e outro médico do hospital disseram que a condição de Yang se estabilizou agora. Seu objetivo é mandá-lo de volta para casa. Mas Wen disse que não pode cuidar dele nem cobrir as despesas do tratamento continuado. Ela disse que, se não pagar, funcionários do hospital disseram que seu marido seria liberado sob custódia dela. Zhang Xue, presidente do hospital, negou a informação.
O outono ainda está quente em Xizhen. Os fazendeiros colhem amendoins de camiseta regata. As crianças jogam bolinha de gude do lado de fora. Depois do jantar, os pais de Yang gostam de deixar a porta de madeira aberta para que o ar entre.
A mãe de Junpei costuma aparecer para queimar incenso na porta da casa deles, chorando no escuro. Ela e o marido dizem que a família de Yang está fingindo que ele é doente mental para protegê-lo.
Pei, mãe de Yang, diz que não consegue encarar o luto da mulher nem sua própria vergonha. Logo que ela a vê, fecha a porta.

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