domingo, 5 de dezembro de 2010

O número de mortos neste conflituoso canto no sul da Tailândia continua crescendo. Seis anos de ataques insurgentes e batalhas com as forças armadas tailandesas deixaram 4.400 mortos e contando, cobrindo de constante medo as plantações de arroz e de seringueiras desta região.
O conflito é um dos mais intratáveis da Ásia. Mas a identidade dos perpetradores e quais são seus objetivos permanecem tão vagos que a violência às vezes é melhor expressada pela poesia.
Eu ouço a paz soluçando
E gritos que ressoam
Por estradas diversas,
Ao redor da torre do relógio,
Nas mesas de jantar, nas casas de chá.
Estes são versos de Zakariya Amataya, um poeta de 35 anos que cresceu em um dos distritos atualmente despedaçados violentamente pelo antigo ressentimento em torno de língua, religião e nacionalismo. Os insurgentes são muçulmanos e de etnia malasiana, e as unidades do exército tailandês enviadas para cá para combatê-los são na maioria budistas. Zakariya, um poeta muçulmano em uma terra budista, está pego no meio do fogo cruzado.
No próximo mês, Zakariya receberá formalmente o principal prêmio literário da região, por seu primeiro livro publicado de poesia. O Prêmio dos Escritores do Sudeste Asiático é um feito incomum para o filho de agricultores analfabetos. Também notável é o fato de a língua da poesia de Zakariya, o tai, não ser sua língua natal. Ele cresceu falando um dialeto malasiano falado pela maioria das pessoas que vivem nas três províncias mais ao sul da Tailândia, ao longo da fronteira com a Malásia. Essas diferenças étnicas e linguísticas, assim como a sensação entre os malasianos de dominação cultural por parte dos tailandeses, são o combustível para a insurreição.
Zakariya passou grande parte de sua vida adulta em Bancoc, e muitos de seus poemas não têm ligação com a violência. Mas entre suas obras mais comoventes estão os lamentos sobre aquilo em que se transformou a terra bucólica de sua infância, e os poemas sobre outros conflitos ao redor do mundo. Ele escreve sobre exércitos de ocupação, incluindo dois poemas sobre o Iraque, um pelos olhos de um atirador atormentado por sua consciência, outro pelo ponto de vista de uma criança.
Oh, pai, por favor, apague o fogo que queima nossa terra.
Pai, pegue todos os baldes de água que temos e os despeje
Sobre as sementes de cerejeiras para que possam crescer de novo
Das cinzas e escombros da cidade.
Borboletas voarão por nossas florestas de novo.
E se a água não apagar o fogo frenético,
Pai, use minhas lágrimas.
Neste mês, Zakariya voou para sua província natal, sua primeira viagem de volta desde que ganhou o prêmio.
Durante dois dias dirigindo pelo que é conhecido como sul profundo, ele se encontrou com outros escritores e conversou com os comandos do Exército tailandês, que por acaso buscaram refúgio em sua velha escola primária. Ele também se reencontrou com a professora que lhe ensinou a língua tai. A violência o seguiu: uma hora após Zakariya ter comido frango com curry em um restaurante na sede provincial de Narathiwat, um mecânico foi assassinado a poucas quadras de distância. Duas horas após ter percorrido uma “zona vermelha” conhecida pela violência constante, três vendedores que entregavam frangos na zona foram mortos a tiros em sua picape.
Os números diários da violência no sul são tão insensibilizadores que cada nova decapitação, explosão ou morte a tiros cada vez tem menos espaço nas páginas da imprensa tailandesa. A minoria de etnia malasiana daqui por séculos se irritou com o controle da área por Bancoc, mas os especialistas não conseguem explicar plenamente por que nos últimos anos os ataques sofreram tamanha escalada. Diferente de outros movimentos rebeldes ao redor do mundo, os insurgentes daqui raramente reivindicam a responsabilidade por seus ataques.
A obra de Zakariya retira o nacionalismo do conflito e dá uma medida de humanidade ao terror e às vítimas sem face. Por meio de sua obra, ele busca ir além das questões de identidade. “Com minha mente e pensamentos eu posso decidir quem quero ser”, ele disse. “Eu quero valorizar os seres humanos mais do que grupos étnicos e nacionalidades.”
O chefe do júri que concedeu o prêmio disse que etnia e política não tiveram um papel.
“Nós não sabíamos quem ele era ou de onde vinha”, disse Adul Chantarasak, o presidente do júri de sete membros, que chamou os poemas de Zakariya de “poderosos e intensos”.
O anúncio oficial descreve sua obra como “sem fronteira”.
“Ela viaja pelo tempo e espaço”, disse o anúncio. “Ela é provocante e encoraja nossa imaginação a pensar e repensar.”
O título do livro de Zakariya, “Sem Mulher na Poesia”, tira seu nome de um dos poemas. Ele escreve em versos livres, algo apropriado, talvez, já que o sul parece um local sem regras.
A decisão de dar o prêmio a Zakariya marcou a primeira vez nos 32 anos de história do Prêmio dos Escritores do Sudeste Asiático que o júri tailandês foi unânime. (Os comitês de nove outros países do Sudeste Asiático decidiram separadamente os seus respectivos prêmios.)
Eu estou viajando na poesia
A poesia viaja em mim
Nós estamos seguindo ao mesmo destino.
As memórias da infância de Zakariya são em grande parte pacíficas: plantações de seringueiras e caminhadas por montanhas para vislumbres do mar e caçar passarinhos. Bacho, o distrito onde ele cresceu, agora é considerado um dos locais mais perigosos no sul.
Em setembro, um aldeão budista octogenário em Bacho e sua esposa de 76 anos, além de dois outros membros da família, foram mortos a tiros à queima-roupa por um grupo de homens com armas de assalto. Suas casas foram incendiadas. As mortes faziam parte de um padrão de aparente limpeza étnica; os aldeões estavam entre os últimos budistas na região.
Mas os muçulmanos daqui costumam ser as vítimas mais frequentes, especialmente professores, soldados, funcionários públicos e qualquer um associado ao Estado tailandês.
“Há medo em toda parte”, disse Terdsak Thawornsut, o diretor de uma escola pública em Narathiwat, onde um casal, ambos professores, foi assassinado em setembro.
“Nós nunca sabemos quando o onde algo acontecerá”, disse Terdsak.
Esta é a Tailândia que os turistas não veem.
Zakariya passou grande parte de seus dois dias de viagem em escolas ou arredores. Ele falou com um grupo de duas dúzias de professores de língua tai na escola de Terdsak e pediu para que encorajassem seus alunos a escrever. Ele se ofereceu para participar de uma oficina de redação.
Ele fez uma visita à sua velha escola primária, um prédio com estrutura de madeira à beira da estrada principal. Os alunos estavam em férias, mas o pátio estava repleto de soldados que tinham acabado de retornar de três dias na selva caçando insurgentes.
Os soldados, em uniformes de camuflagem e com rifles de assalto M-16 pendurados no ombro, tinham olhares vidrados de homens que não dormiam há várias noites. Eles estavam entre os murais coloridos usados para ensinar o alfabeto para as crianças.
Zakariya enfiou a mão em sua bolsa, retirou uma cópia de seu livro e dedicou a eles. Enquanto circulava pela escola, ele notou em um quadro de avisos o nome de sua primeira professora primária, a mulher que o ensinou a ler e falar tai.
Era a primeira vez em três décadas que ele via sua professora, Tantima Saeaui, atualmente com 57 anos. Uma mulher budista magra com maneirismos gentis, Tantima disse que reconheceu imediatamente Zakariya, que tem tez de chocolate, cavanhaque e cabelo até seus ombros.
“Eu fico feliz em ver meu aluno tão bem-sucedido”, ela disse. “Você era inteligente e aprendia rápido.”
Zakariya elogiou a paciência de Tantima. “Era muito difícil nos ensinar”, ele disse. “Nós não falávamos nenhuma palavra de tai quando iniciamos a escola.”
Ao partir, o poeta muçulmano se virou para a mulher budista que lhe ensinou aquelas que agora são as ferramentas de seu ofício: “Eu vim aqui para dizer, ‘Obrigado, professora’”.

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